Pandora 09/01/2024Shirley Jackson é uma de minhas autoras preferidas. Além da escrita maravilhosa, seu trabalho de exposição da mente humana, especialmente suas perturbações, é primoroso. Ela sabia brincar com nossas supostas certezas. Prova disso é que quando terminei, pensei: não sei, não gostei tanto quanto Sempre vivemos no castelo; mas depois de meia hora elocubrando o que havia lido já tinha mudado de ideia, vendo toques de genialidade em cada canto.
Primeiro, eu amo terror psicológico. Segundo, andamento lento e tensão crescente. Motivo, aliás, pelo qual não curto a maioria dos livros/filmes do que eu chamo de terror de ação, cheios de sustos e elementos gráficos com a intenção clara e nada sutil de causar horror. Eu gosto de quebrar a cabeça. E lady Jackson sabia criar quebra-cabeças com uma habilidade ímpar.
Final dos anos 50. Aqui temos quatro pessoas (dr. Montague, Luke, Theodora e Eleanor) que são reunidas numa casa supostamente assombrada pelo motivo oficial de participar de um estudo científico, mas que têm, na verdade, cada uma, seus próprios motivos para estar lá. Fama, curiosidade, diversão, fuga, sentido para a vida são alguns deles. A principal destas personagens é Eleanor, uma moça solteira de 32 anos, que passou os últimos onze cuidando da mãe doente e sem a chance de desenvolver amizades ou relacionamento amorosos e sexuais ou de fazer algo por si própria. Com o falecimento da mãe, há três meses, do qual se sente culpada, ela vive com a irmã, o cunhado e o sobrinho, onde não tem nem seu próprio quarto, nem autonomia para gerir sua vida. E é sob a ótica de Eleanor - embora a narrativa se dê em terceira pessoa - que acompanhamos a estada na Casa da Colina.
Shirley sempre cria mulheres interessantes e complexas e aqui a repressão feminina está em detalhes. Embora Eleanor e Theodora sejam mulheres com histórias de vida e personalidades distintas, vivem a mesma realidade das mulheres daquela época, cuja função principal estava em serem boas esposas e mães, ainda que fossem profissionais de sucesso. Um exemplo disso é a visita à casa da mulher do dr. Montague, autoritária, independente e corajosa e dada a experimentos mediúnicos, que se torna um estorvo para todos em vista de sua personalidade, mas que é justificada pelo marido nos seguintes termos: “É uma boa esposa e cuida muito bem de mim. Faz as coisas de forma esplêndida, sério. Botões das minhas camisas”. E depois: “esse é basicamente seu único vício”, referindo-se às atividades místicas da mulher, que obviamente ele não levava a sério.
Como é natural nos trabalhos da autora, ambiguidade e diálogos nonsense são comuns, assim como personagens bem construídos e situações que podem ser analisadas por vários ângulos. Seus livros são para serem lidos mais de uma vez, e em cada leitura algo mais pode ser observado. Como a Casa da Colina. É assombrada ou não? Ela têm influência sobre as pessoas? Ou são as pessoas, que com suas atitudes e os infortúnios, por sua ordem natural, que deram fama a uma casa um tanto peculiar por sua arquitetura e isolamento?
Ao longo dos dias passados na casa, a medida que as interações vão se desenvolvendo e diante da tensão de certos acontecimentos, vêm à tona particularidades de seus habitantes que os mesmos tentavam dissimular ou esconder, além de provocar sentimentos novos em Eleanor, uma complexa relação que envolve amor e ódio, atração e repulsa. Um vulcão adormecido um dia entra em erupção.
“Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta; até cotovias e gafanhotos, supõem alguns, sonham.” Esta primeira frase da narrativa é a própria essência do livro. Cada vez que lamento a partida precoce de Shirley Jackson, me contento por sua obra ser tão rica, que sempre há o que se absorver dela.
Nota:
As principais adaptações audiovisuais de A assombração da Casa da Colina:
1. Filme Desafio do Além (The Haunting, 1963), direção de Robert Wise;
2. Filme A Casa Amaldiçoada (The Haunting, 1999), direção de Jan de Bont;
3. Série A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House, 2018), criação de Mike Flanagan. A série não é uma adaptação, é muito levemente baseada no livro.