Leila de Carvalho e Gonçalves 28/06/2021
Tributo À Memória De Um Pai
No ano de 1991, quando estava com 17 anos, José Luís Peixoto publicou um poema no Suplemento Juvenil do Diário de Notícias e a boa repercussão incentivou-o a continuar a escrever. Nove anos depois, no mesmo local, ele apresentou o primeiro capítulo de Morreste-me, seu romance de estreia, que pouco depois chegou às livrarias portuguesas numa tiragem de apenas 500 exemplares.
O livro não tardou a receber o reconhecimento da crítica e público, entretanto levou inexplicáveis 15 anos para cruzar o Atlântico e ganhar uma edição brasileira. Desde então, O romance também vem conquistando um grande número de admiradores em nosso país, contribuindo para tornar Peixoto mais conhecido entre nós, afinal, ele é um dos principais nomes da literatura lusa contemporânea.
Em primeira pessoa e de cunho autobiográfico, a narrativa descreve a dor de um filho diante da doença e da morte do pai, enquanto ele regressa à casa da família, ocasião que lhe desperta inúmeras lembranças.
?Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, ?o sol enegrecido de luz? a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida.?
Morreste-me também é a oportunidade desse filho ?eternizar, no papel, a figura de um pai? que não se faz mais presente. Para dar vazão a seus sentimentos, Peixoto emprega uma prosa densa e não linear que se destaca pelas inusitadas associações entre luz e sombra, como o ?sol enegrecido pela luz? mencionado no trecho acima.
Essa luz convertida em sombra sinaliza o luto que igualmente é tratado como ?uma chuva grossa de um inverno negro? que deságua sobre o filho na presença do corpo gélido do pai, ?lívido na luz trémula das velas, arranjadinho, penteado com água, vestido com o fato usado no casamento da filha?. Aliás, um ?inverno noturno? que distancia uma ?felicidade simples e singela? e, indiferente a passagem do tempo, não cede, espalhando-se pela casa desabitada desde a internação paterna.
?O pó das horas sem gente a vivê-las cobriu os móveis e o espaço fechado entre eles. As paredes voltaram a separar o inverno nocturno, permanente e o ciclo alternado dos dias e do mundo, alheio a nós, para lá de nós. Comigo, a casa estava mais vazia. O frio entrava e, dentro de mim, solidificava. As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios.?
A fragmentação do eu reporta a perda de identidade frente a morte de um ente querido, afinal, quem é esse filho agora sem pai? É preciso tempo para realocar novos espaços para abrigar tamanha ausência, portanto Morreste-me também se debruça sobre a aceitação do luto, uma travessia capaz de cicatrizar feridas e transformá-las numa saudade cerzida pelo poder das palavras:
?E não quero e não posso esquecer o que outrora senti do teu olhar. Pai, fiquei no silêncio do inverno que abraçaste. Não há primavera se não imaginar erva fresca das palavras erva fresca ditas por ti; não haverá verão se não imaginar o sol da palavra sol dita por ti; não haverá outono se não imaginar o fundo do esquecimento da palavra morte dita nos teus lábios. Por isso, pai, no ar, o silêncio de ti é sofrer, no tempo que passa, no ar, no tempo que não passa já.?
Boa leitura!
Nota: Comprei o e-book, recomendo.