Lucas 25/07/2021
Misticismo, relações familiares, religião... As aleatoriedades como fonte de mais um livro incrível de Gabriel García Márquez
Uma moça solitária. A raiva canina. Um padre bibliotecário. Freiras x bispo. Um homem decadente. Uma mulher doente. Lendas africanas. Exorcismo.
Estes substantivos aleatórios podem ser considerados uma ementa de alguma obra feita por alguém com distúrbios que se propõe a escrever um livro. Mas quando se trata do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), esta obra adquire ares de uma magnificência que só ele é capaz de transmitir.
Do Amor e Outros Demônios, lançado em 1994 quando o seu autor, laureado com o Nobel de Literatura em 1982, já estava com a "vida ganha", é mais um daqueles livros típicos de Gabo que partem de elementos abstratos e aleatórios para a montagem de uma narrativa que usa e abusa de uma criatividade cativantemente inigualável. O maior dos símbolos desta característica, o maravilhoso Cem Anos de Solidão (1967) possui tanto esta carga abstrata que o leitor pode perder-se diante de tantos personagens, muitos deles homônimos. Mas este ponto aliado a outros, como a incrível ação que marca cada linha (nos livros de Gabo, SEMPRE há algo acontecendo), faz do contato com a narrativa durante a leitura uma sensação jamais percebida em outro autor. Pessoalmente falando, é incrível como o passar dos anos e das obras lidas de Gabriel García Márquez (este foi meu quinto livro lido dele) só fortalece este encanto.
A obra aqui resenhada tem como preâmbulo de inspiração (e que é descrito numa espécie de prefácio da edição sempre bem-feita da Editora Record, que edita os livros do autor no Brasil) uma reportagem que o então jornalista Gabriel García Márquez fez em 1949. O anteriormente tradicional Convento de Santa Clara, situado na Colômbia, iria ser demolido para a construção de um hotel e o jovem jornalista foi incumbido de descrever a retirada dos restos mortais de vários personagens que estavam sepultados no edifício, muitos deles há mais de um século. Lá, ele se depara com o túmulo de Sierva Maria de Todos Los Ángeles, cujos restos mortais apresentavam de marcante uma imensa cabelereira, de "vinte e dois metros e onze centímetros" de comprimento.
Para alguém com a capacidade criativa de Gabriel García Márquez, que iria explodir anos mais tarde, tem-se nisso um "estalo" para uma história que prende a atenção da 1ª à 191ª e última página. Este relato, inclusive, revela um traço do seu estilo realista mágico: o apego ao decrépito, que ora serve como elemento cômico, ora serve para intensificar uma sensação mais repulsiva.
Inspirando-se nisso, Gabo volta ao período da Colômbia Colonial (aproximadamente em meados do século XVIII) para contar a história por ele concebida de Sierva Maria. Neste sentido, costumes dos escravos, Igreja Católica ultraconservadora, um convento das Irmãs Clarissas (que viviam e vivem até hoje em mosteiros enclausurados), um bispo simpático, entre outros elementos e personagens curiosos são esparramados nas linhas.
Destes outros personagens, destaca-se o pai de Sierva Maria, Dom Ygnacio de Alfaro y Dueñas, segundo marquês de Casalduero, cuja história de vida é uma síntese da mistura de cômico e trágico que o autor tão bem sabe fazer (a cena em que o marquês conhece seu futuro sogro é hilariante). Um fazendeiro decadente, ele é o grande "depósito" da famigerada solidão que Gabo coloca em todos os seus livros. Sua esposa, Bernarda Cabrera, por outro lado representa o decrépito e um pouco da devassidão, elementos também comuns ao estilo do escritor. Há também o médico Abrenuncio, que protagoniza várias passagens engraçadas e/ou cruas, o Bispo Toribio de Cáceres y Virtudes e sua sabedoria pontual, a abadessa Josefa Miranda, coordenadora do convento e com um eterno ranço do bispo... São tantos outros personagens que não é difícil perder o rumo em apresentar todos eles.
Mas é o padre Cayetano Delaura quem merece um parágrafo só para si. Fiel escudeiro do bispo e bibliotecário da Diocese, é quase instantâneo simpatizar com ele e sua personalidade. É ele também quem traz para si grandes agruras derivadas das dúvidas que abatem sobre a sua convicção na vocação. O padre também desenvolve um olhar radical sobre os que lhe rodeiam, mas que vai amainando com as suas experiências. Em termos mais concretos, até mesmo a eterna rivalidade entre ciência e religião é por ele trabalhada na narrativa. Se ele sofre as tentações do "pior demônio de todos" (será mesmo?), Delaura também condensa pra si os conflitos menos abstratos que Gabo quis descarregar em suas páginas.
Ademais, citar outros elementos ou personagens seria adiantar questões que são esplendidamente desenvolvidas pela narrativa sempre envolvente. A raiva canina citada no primeiro parágrafo, talvez o mais estranhos dos elementos lá expostos, é explicada logo nas primeiras páginas. Então, furtar-se de fornecer maiores detalhes aqui é um favor que está sendo feito ao futuro leitor.
Do Amor e Outros Demônios, como tudo que vem de Gabriel García Márquez é viciante, dinâmico, hilário, trágico, direto, divertido e triste: tudo isso se mistura, muitas vezes em duas ou três páginas consecutivas. Ler a obra é como estar envolvido por uma bolha mística, onde passado e presente, realidade e ficção, amor e ódio e o belo e decrépito se misturam, sem limites claramente definidos.