spoiler visualizarJô 10/10/2023
É mais do que uma resenha.
Analisando criticamente o posicionamento do autor Marcos Bagno em sua obra "Preconceito Linguístico: O Que É, Como Se Faz" (1999) com relação a um tipo de ?desconstrução? do papel da Gramática Normativa em detrimento das fundamentações teóricas da Linguística moderna, mais especificamente da área relacionada à sociolinguística, usadas como contraposição à utilização da Gramática no âmbito social e, também, no ensino e aprendizagem da língua portuguesa, a crítica principal da resenha consiste no fato de a obra propor-se a ser um compêndio de teorias críticas embasadas no próprio conhecimento empírico do autor sobre manifestações linguísticas, cuja temática do preconceito aparece diretamente relacionada à conduta atribuída à língua socialmente institucionalizada e suas variações: diacrônica, diatópica, diastrática e diafásica. Porém, essas variações não são explicadas, sobretudo, considerando seu público alvo que, de um modo geral, não está familiarizado com o conceito e carece de explicações mais assertivas sobre o que são variações linguísticas, cujas orientações teóricas poderiam ser dadas, ao menos por meio de leituras complementares que não surgem como apoio a um leitor menos entendido do assunto abordado, dando a impressão de que o veredito do autor é a palavra final e derradeira em relação ao tema, o que, tratando-se de temas referentes a uma ciência humana, é difícil de conceber como algo fechado a posteriores discussões. Embora o autor, na página 19, afirme que "[...] variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa.", ele não estabelece os princípios e modelos de variação, exceto os da ideia de que há variações oprimidas que sofrem preconceito e a Gramática Normativa que oprime as demais. Ou seja, limita-se a uma dicotomia, estabelecida como duas" versões" de língua (o que por si só é limitante) e não há uma variabilidade que, como sendo a proposta da obra, deveria ser mais aprofundada. Todos estes fatos da língua socialmente estabelecida são, indiscutivelmente, abordados na obra. Entretanto, o posicionamento do autor está mais enviesado nas regras gramaticais do que no uso da língua viva propriamente dita, justamente para usá-la como meio de propagar um pensamento ideológico que, muitas vezes, fica à parte da cientificidade tanto da Linguística quanto da Pedagogia, o que poderia fazer a obra ser reintitulada como ?Preconceito Gramatical?.
Ademais, observa-se pouca fundamentação no que diz respeito a dados linguísticos (salvo alguns exemplos fonológicos e lexicais, pois predominam dados gramaticais) que levam aos vários vereditos que o autor dá em relação ao que propõe criticar. Referências de outros pontos de vista, sobretudo as que poderiam, eventualmente, divergir de sua visão do que, segundo o autor, é um agente gerador de preconceito, a Gramática Normativa, surge indiretamente no decurso da obra, e é quase imperceptível. Partindo do pressuposto de que o autor não parece considerar, ao menos de forma clara, as variações linguísticas como o fator preponderante para analisar e defender seu posicionamento crítico (visto apenas fazer breves comentários e alusões à sua existência sem se aprofundar nelas), mas sim um compilado de exemplificações que restringem a problemática à Gramática Normativa, aquela cuja norma padrão culta da língua é estabelecida para fins diversos e mediante contextos específicos, evidencia que o objeto de análise, discussão e crítica no decorrer de sua obra é a Gramática Normativa em seu sentido e função estritos em oposição à língua viva, ao passo que esta fica no plano de subserviência à Gramática, considerando que o enfoque deveria estar na produção linguística e não nas regras normativas, as quais mais surgem nas páginas dos livros e manuais do que na fala da parcela mais significativa da comunidade linguística, neste caso, da língua portuguesa.
Um ponto que me chamou particular atenção foi a falta de críticas construtivas com relação ao acesso à educação que, muitas vezes, soa ela própria opressora e de cunho elitista na voz do autor, sem margem há ideias para a integração igualitária desta por parte de todas as classes sociais.
Quando o autor critica a inacessibilidade à formalidade da língua em certas instâncias, por um lado, faz sentido a crítica, pois há muitos analfabetos no país e muitos documentos caros à população são escritos numa modalidade muito formal da língua (exemplo de uso da língua dado pelo autor), e pode tornar-se um obstáculo até para os alfabetizados. Mas, por outro lado, essa não deveria ser a melhor e principal crítica e, tampouco, a maneira ideal de lidar com a situação. Ou seja, questionar uma dita inacessibilidade por parte de muitos brasileiros à Constituição e às leis por terem sido escritas numa linguagem realmente muito técnica, ao passo que a maioria dos principais interessados no conteúdo delas carregam consigo uma deficiência que os incapacita de ter acesso a elas não deveria ser o foco. O que deveria surgir como foco é como capacitar a população a obter os meios para alcançar essa acessibilidade, ou seja, de como terem acesso à educação de qualidade. Contudo, o modelo Freireano (cultuado no Brasil como modelo dogmático de educação), que implementa a ideia de os indivíduos, sobretudo os menos favorecidos, serem "vítimas oprimidas" (neste caso pelo formalismo da língua postulada pela normatividade da Gramática), estabelece que os componentes dessa dinâmica social, a população, persista tanto na ignorância de não entenderem o que leem e escrevem como de não questionarem o não acesso àquilo que os possibilitaria, por direito constitucional, a saber ler, escrever e, principalmente, entender o conteúdo daquilo que é lido e escrito. Em outras palavras, mantém a população acomodada e, principalmente, conformada com essa realidade em vez de postular a verdadeira mudança, a melhoria e ampliação da educação pública, sendo esta igualitária e acessível a todos. Isso não significa que, por exemplo, documentos de importância social não devam ser adaptados para serem acessíveis a todos. Mas esse não é a força motriz que desencadeia preconceitos, como o autor propõe.
É importante frisar que a Gramática Normativa é um objeto de estudo que pode funcionar como ferramenta para obtenção de conhecimento, que gera inclusão social quando esta estiver à disposição da população como um componente essencial a se aprender na educação básica mediada pelas políticas públicas (aquelas, cuja ausência que deveria ser o maior alvo das críticas). Contudo, o conhecimento gramatical, ou das normas da língua, não é e nem deve ser entendido ou ensinado como um conhecimento que doutrina os indivíduos (como o autor diz explicitamente na página 140), mas que os capacita e os possibilita a se desenvolver intelectualmente sem se privar de sua forma única e particular de se expressar como um indivíduo detentor de suas idiossincrasias linguísticas. Assim sendo, a Gramática Normativa não deve ser limitada a um mero conceito dogmático desprovido de uma importância intrínseca ao seu uso e que parece surgir como um algoz social e não como uma ferramenta de oportunidades para quem adquirir seu uso, mesmo que dos mais básicos conceitos que a compõem e, assim, poder fazer uso deles quando a ocasião se mostrar oportuna. O autor deveria criticar quem impele o conceito de gramática como algo inexorável, sobretudo aos usuários da língua, os mais interessados no seu uso. Inversamente, o autor critica o uso e ensino da gramática, pois acredita que seja uma fórmula que doutrina e leva ao preconceito linguístico que, na verdade, surge mediante muitos outros fatores, como a xenofobia, por exemplo, algo que ele mesmo relata no início do livro ao comentar quem são as pessoas na capa, mas parece "esquecer" gradualmente nas páginas seguintes. Assim, vê-se que um preconceito gera outro. Mas o autor insiste em restringir a existência do referido preconceito ao uso de regras de um manual, mas que perpassa muitos outros aspectos, começando pela própria ausência de uma educação básica de qualidade e igualitária, na qual o ensino da gramática (tal como da literatura) surge como um de seus elementos constitutivos.
Por que os responsáveis pelas políticas públicas do País mantêm esse quadro, considerando que o investimento, sobretudo na educação básica, pode surgir como o mediador entre a total privação dos indivíduos menos favorecidos economicamente do País (que são a maioria) do conhecimento que os possibilitaria ascender socialmente e o acesso à educação, que seria o catalizador das potencialidades individuais para aprimorar o nível escolar da sociedade como um todo? O autor não parece se preocupar, enquanto também pedagogo, em mostrar caminhos para resolver a questão que, começaria por fazer críticas cobrando isso do Poder Público que, fosse em 1999 (ano do livro), seja em 2023, continua a exercer seu descaso com a população, principalmente com as classes menos favorecidas. Essa segregação educacional que, em tese, separa ricos de pobres, baseando-se no seu nível de instrução escolar para uma classe (ricos) sobrepujar outra classe (pobres) por meio do poder adquirido pelo acesso à educação em detrimento dos que não o têm, mostra claramente que o foco não é buscar alternativas educacionais para sanar o problema, nem a nível pedagógico, tampouco social, mas manter uma disputa, da qual a sociedade sai perdendo. Contudo, alimenta a militância ideológica de "luta de classes" (o que revela claramente o viés marxista do autor que tem dominado há muito as Universidades federais brasileiras), e isso é o que a descrição do próprio livro diz que se propõe a ser. Afinal, aparentemente, não há outros meios válidos para combater os males da sociedade senão pela militância ideológica.
A obra tem a importância de mostrar que esse fenômeno é real e precisa ser, sim (!) combatido, mas pela educação e acesso a ela, não com militância de afirmação ideológica. O próprio termo "preconceito" não parece mais ser o adequado, precisando ser atualizado para "descriminação", principalmente após o termo "glotofobia" (termo cunhado pelo pesquisador e professor francês de sociolinguística Philippe Blanchet, em 1998) surgir, que, segundo o site da ABL (Academia Brasileira de Letras) é definido como: "Repúdio, aversão ou desprezo por pessoas ou grupos sociais em razão de sua língua, variedade linguística ou sotaque."