Lucas 22/08/2015
Uma boa introdução à Dostoiévski
As “Duas Narrativas Fantásticas” de Fiódor Dostoiévski são os contos “A dócil” e “O sonho de um homem ridículo”, publicados, respectivamente, em novembro de 1876 e abril de 1877, no “Diário de um escritor” – a revista mensal dirigida pelo próprio Dostoiévski, que existiu entre 1876-79. Segundo Vadim Nikitin, o tradutor e prefaciador do livro, os dois textos são definidos por Dostoiévski como “raskáz”, um tipo de narrativa heterogênea russa, que não tem um equivalente preciso em português, mas que se assemelha à estrutura da “novela” ou do “conto”.. Farei uma breve resenha separada de cada “conto”, e, em seguida, algumas observações sobre os dois em conjunto.
“A dócil” foi inspirado em um incidente que ocorreu na Rússia à época, em que uma mulher se suicidou com um ícone religioso da Virgem nos braços. No entanto, o interessante no conto de Dostoiévski é que o narrador que conta a estória da mulher até sua morte é o próprio marido dela, que narra a estória retrospectivamente, conforme vai se lembrando e tentando compreender o sentido de seu ato. Talvez o conto “A dócil” possa ser interpretado como uma grande denúncia daquilo que o feminismo, atualmente, chamaria de “patriarcado”. Atribuir essa denominação à Dostoiévski, na Rússia czarista em pleno século XIX, talvez seja um anacronismo. Mas algumas evidências apontam na direção de uma reflexão sobre a condição da mulher e sobre o “machismo”. Por exemplo, ele faz referências diretas às reflexões de J. Stuart Mill em sua obra “A submissão da mulher” de 1869 (ver p. 43, nota 25), que são vazadas pelo crivo do narrador – o marido. Além disso, como destacou Nikitin em seu prefácio, o título original do conto, “Krôtkaia”, é a forma substantivada e feminina do adjetivo “krôtkii”, cuja etimologia tem relação com “amansado ou domesticado por castração” (ver p. 9). Por conta dessas nuances, o título teve muitas traduções diferentes em português (“Uma doce criatura”, “Ela era doce e humilde”, etc). Ao ler o conto, é fundamental prestar atenção nas entonações e divagações do narrador, e seu entendimento do caso narrado. Será que, no fundo, o conto em si não é mais sobre ele do que sobre a mulher que decidiu se matar?
“O sonho de um homem ridículo”, o segundo conto, diz respeito a um homem que faz um relato sobre a experiência visionária que viveu no dia em que decidiu se suicidar. Uma vez tendo notado o absurdo da existência e sua ausência de significado, ele decide se matar. Porém, no dia fatídico, enquanto dirigia-se para casa decidido, numa movimentada e confusa noite da São Petersburgo do século XIX, ele teve um encontro inesperado e brusco com uma menininha desesperada na rua, que abala sua visão de mundo e suas certezas. Uma vez em casa, diante do revolver, ele não tem mais tanta certeza sobre sua decisão. Acaba adormecendo com sob o lado esquerdo do peito e, em seu sonho, têm uma visão reveladora que dota sua vida (outrora absurda e insignificante) de sentido e significado.
O que os dois contos tem em comum é o tema do suicídio. Vistos em conjunto, parecem propor uma reflexão sobre a vida, a morte, a ética e a sociedade. Outro tema menos óbvio é a religiosidade: o “ícone” tem um significado importante na Igreja Ortodoxa Russa; por sua vez, a “visão” sonhada pelo homem é como uma epifania, uma revelação divina. Apesar dessas semelhanças, os dois contos são bastante diferentes. Além disso, o próprio Dostoiévski explica o sentido do adjetivo “fantástico” das suas narrativas: elas são “fantásticas” no sentido de que a própria situação da narrativa é inverossímil e absurda (p. ex., em “a dócil” o marido narra tudo diante da própria mulher morta em cima da mesa, instantes depois de sua morte). Apesar dessa natureza “fantástica”, ele pretende que cada relato seja “realista ao extremo” (ver p. 13-15). Eu sou muito suspeito pra falar das “duas narrativas fantásticas” de Dostoiévski. Mas, para mim, elas são, sem exagero, duas das melhores peças de literatura que já li na vida (pelo menos até agora). Recomendo muito mesmo. Além disso, considero o livro uma ótima introdução à obra de Dostoiévski para quem tem curiosidade de conhecê-la. Pelo menos foi para mim. Boa leitura!