Erica 07/07/2023
Vestir-se de alma
A cada época, me fica uma mensagem diferente.
Hoje, eu lembro sobre ter que defender seu tempo criativo, ter que lutar para garantir que você vá exercer sua arte naquele tempo preciso. Certamente, é porque para mim tão difícil hoje ter um tempo criativo. Defender o tempo da Arte.
Em parte, essa defesa exige não apenas abrir um espaço na agenda, mas também – e principalmente – encarar o sistema capitalista que nos diz que apenas importa o que gera dinheiro. Um sistema utilitarista, como um grande organismo egoísta que nos impele a fazer o necessário para a sobrevivência dele próprio. Então, esse grande corpo nos dita regras, nos incute culpas, nos polui a mente, assim, obedientes, temos medo de ir contra ele, que é, em última instância, ir contra a nossa própria subsistência, ir contra o nosso próprio pão de cada dia e, pior, ir contra o pão de nossos filhos e de todos que dependem de nós.
Por isso, hoje, acho tão difícil defender meu tempo criativo.
Mas, há que se lutar. A arte tem que existir. Há que se brigar pelo tempo da Arte, que é o tempo da alma. Como costumo brincar com uma amiga: é epopeico e heroico esse movimento... e exige posicionamento constante, exige se levantar da cama, saudar o sol, vestir a armadura e bater com a espada contra seu escudo para espantar o medo. Por isso as “bruxas” riam alto, diz Clarissa em algum lugar, para espantar o próprio medo, para elevar o astral, se vestir de imperiosa força de vontade.
Imperiosa força de vontade.
Por isso, releio tanto esse livro. A cada vez, preciso de uma força, e esse livro me dá essa força.
Clarissa Pinkola Estés reuniu várias histórias e as analisa pela ótica psicanalista junguiana e com foco na mulher.
Alguns trechos sobre tempo (do CAPÍTULO 9: A volta ao lar: O retorno ao próprio Self):
“Como equilibramos a necessidade da volta ao lar espiritual com a nossa vida de rotina? Basta que planejemos previamente o espaço para o lar espiritual nas nossas vidas. É sempre surpreendente como é fácil para a mulher "arrumar um tempo" quando ocorre uma doença na família, quando uma criança precisa dela, quando o carro enguiça, quando ela tem uma dor de dente. É preciso que demos o mesmo valor à volta ao lar, se necessário que lhe atribuamos proporções de crise. Pois a verdade inequívoca é que, se a mulher não for quando chegou sua hora de ir, a fenda finíssima na sua alma/psique se transforma numa ravina, e a ravina se transforma num abismo fragoroso.” (p. 215)
"Para esse tipo de mulher, a entrada para o lar profundo é evocada pelo silêncio. No me molestes. Silêncio Absoluto, com S maiúsculo e A maiúsculo. Para ela, o barulho do vento passando por um grande bloco de árvores é silêncio. Para ela, o ruído de um córrego da montanha é silêncio. Para ela, o trovão é silêncio. Para ela, a ordem normal da natureza, que nada pede em troca, é o silêncio revigorante. Cada mulher escolhe tanto como pode quanto como deve." (p. 215)
A Mulher Selvagem é uma combinação de bom senso e senso da alma. A mulher medial é o duplo de si mesma e tem também essa dupla capacidade. Como a criança na história, a mulher medial pertence a este mundo, mas tem condição de viajar até os recessos mais profundos da psique com facilidade. Algumas mulheres nascem com esse dom. Outras mulheres adquirem essa capacidade. Não importa a forma pela qual se chegue a ela. Um dos efeitos da regularidade na volta ao lar está no fato de a mulher medial da psique sair fortalecida toda vez que a mulher vai e volta. (p. 217)
Portanto, com todos esses atos criativos, o filho vivencia o que a mulher-foca instilou nele. O filho vive o que aprendeu debaixo d'água, a vida relacional com a alma selvagem. Descobrimo-nos, então, repletas de toques de tambor, repletas de cantos, repletas das nossas próprias palavras, que ouvimos e transmitimos; novos poemas, novos modos de ver, novos modos de agir e de pensar. Em vez de tentar "fazer com que o momento mágico dure", nós simplesmente o vivemos. Em vez de oferecer resistência ao trabalho da nossa escolha, ou de ter pavor dele, nós mergulhamos nele com facilidade; vivas, cheias de novas ideias e curiosas para ver o que virá a seguir. Afinal de contas, a pessoa que está retornando sobreviveu a ser carregada mar adentro pelos grandes espíritos das focas. (p. 219)