brunossgodinho 11/08/2020Presos no dorso do tigreEm seu livro
As palavras e as coisas, de 1966, Michel Foucault interrogava: "A nós, que nos acreditamos ligados a uma finitude que só a nós pertence e que nos abre, pelo conhecer, a verdade do mundo, não deveria ser lembrado que estamos presos ao dorso de um tigre?"
A autora tem um estilo de escrita ótimo. Eu diria que, talvez, uma boa palavra para descrevê-lo é "ponderado". A autora não introduz nenhuma língua fictícia plenamente estruturada, não se excede nas descrições de ambientes ou pessoas, consegue retratar bem os estados mentais do protagonista em diferentes momentos de sua vida, o que reflete muito bem os estágios de seu amadurecimento.
O mundo criado por Ursula Le Guin para seu
O feiticeiro de Terramar é um no qual as palavras têm força e, por elas, os feiticeiros são capazes de habitar o mundo numa capacidade maior que a dos demais seres viventes. A jornada de Ged, nosso herói, segue uma fórmula muito simples: aquela do autoconhecimento. A boa execução dessa simples fórmula, porém, eleva a qualidade do livro.
Gostei muito do conceito desse mundo porque, imediatamente, fez-me lembrar desta peça magnífica das ciências humanas que é o livro de Michel Foucault. Um livro que o próprio autor considerou um tanto falho, não porque não conseguira provar suas teses, mas porque seu edifício metodológico estava, ainda, em construção e não atingiu aquilo tudo que poderia ter sido. Mesmo se só levou seu autor a meio caminho do desejado, foi muito mais longe do muitos outros pensadores de sua época.
A pergunta formulada por Foucault diz respeito, em poucas palavras, à fragilidade de nossa identidade - e por nossa há de se entender não "a de cada um", mas a da espécie, criada no século XIX e por ele universalizada como "homem". O "homem" ficou tão condicionado por sua descoberta de si mesmo que se tornou incapaz de pensar que o mundo existia antes de si mesmo. Ora bolas, como assim? Trocando em miúdos, aquilo que o homem chama de "economia", "biologia", "gramática" são identidades atribuídas a formas de compreender o mundo, da mesma maneira que "homem" é uma identidade que o ser humano atribuiu a si mesmo para se entender, para tornar-se objeto de seu próprio pensamento. A fatídica pergunta, então, explode essa situação pois indaga: quem lhe garante tanta certeza de si mesmo para pensar o mundo se você não existe fora dele e, por outro lado, ele não existe fora de você? Afinal, se você nomeia as coisas do mundo, quem te nomeou, "homem"? Ao perceber isso, toda estabilidade cai por terra e a selvageria que seria estar preso ao dorso de um tigre vem à tona.
A jornada de Ged neste livro é orientada, justamente, pelas perguntas, "quem é a sombra que Ged liberou?", "o que é aquele demônio que atormenta nosso herói?" Perceba-se que Ged passa o livro inteiro tentando usar seus poderes mágicos incomumente fortes a seu favor, tentando domar um mundo que ele supõe poder conhecer e, então, libera uma força maléfica que põe em risco a vida de toda a humanidade se ela conseguir se apoderar dele. Daí em diante as palavras, a magia de Ged vão enfraquecendo porque ele se vê no abismo dessa instabilidade de perder a si mesmo numa eterna fuga dessa sombra que o persegue. A sombra, é revelado, era parte dele mesmo. Ela só era outra coisa na medida em que ele a tratava como tal; ela sempre foi uma parte dele em busca de retornar. Uma parte, contudo, que ele não soube reconhecer. O tormento dele não é causado, então, pela condição inerentemente maléfica da sombra, mas sim por sua própria incerteza sobre um ser que ele não conseguia nomear.
A combinação, então, dessa ambientação num mundo mágico em que as palavras têm força sobre as coisas e de uma jornada de autoconhecimento resultaram numa execução excepcional de um velho tema, nos dando algumas belas camadas a serem descobertas. Admitidamente um livro para o público infanto-juvenil,
O feiticeiro de Terramar consegue, pelo brilhantismo de sua autora, superar em muito qualquer limite que a demografia sugerida poderia impor ao texto.
Referência do texto citado: FOUCAULT, Michel.
As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 444.