Gabriel 18/01/2019
A Roda do Tempo gira, livros vêm e vão, e continua tudo muito bom...
No ano em que estrelou o quinto filme da série Duro de Matar, Bruce Willis admitiu durante uma entrevista que ainda atuava em longas do gênero porque “filmes de ação dão mais dinheiro”. Ao comentar sobre as constantes explosões, típicas de blockbusters desse nicho, no set de filmagens, o ator disse que “quando você já viu as chamas algumas vezes, elas não têm mais interesse. Eu sei que uma parte do meu público gosta das explosões, mas para ser sincero, eu já estou cansado disso”. Não é incomum que longas séries do cinema tornem-se repetitivas após encontrarem uma fórmula de sucesso que funcionou nos primeiros filmes, mas que começa a incomodar dada a ausência de novidades nas novas produções cinematográficas.
O mesmo receio existe em sagas na literatura, e quando se chega no quinto volume de uma história de quatorze partes, o leitor pode pegar o livro com certa apreensão de que a criatividade do autor tenha começado a se esgotar, sobrando-lhe como justificativa para ter continuado a escrever e lucrar sobre aquele universo talvez uma necessidade de pagar o aluguel da casa e as contas do mês. Felizmente, com A Roda do Tempo, a sensação, pelo menos até agora, ainda é de uma evolução de um livro para o outro. Se as primeiras partes tinham um ar mais descompromissado de aventura e mais ação, e A Ascensão da Sombra havia injetado mais complexidade com tramas políticas, As Chamas do Paraíso é um livro de caráter mais bélico, que traz batalhas de grandes proporções, principalmente da metade para o final.
Para ter ido ao Deserto Aiel no volume anterior da saga, Rand teve de abdicar de enfrentar alguns inimigos por hora. Agora que conquistou mais um poderoso exército, terá de retornar das terras áridas para enfrentar o Abandonado Rahvin, que ascendeu sobre a cidade de Caemlyn após tornar-se amante de Morgase, rainha de Andor e mãe de Elayne. Também terá de enfrentar Couladin, líder dos Aiels que não juraram lealdade ao Dragão, após o próprio antagonista declarar-se o herói renascido, e que partiram para sitiar (por uma dívida histórica) a já devastada por uma intensa guerra civil Cairhien, da qual Rand tem interesses, em busca de mais aliados contra o Tenebroso.
Enquanto isso, Siuan Sanche, após ser vítima de um golpe, foge com Min, Leane e o Falso Dragão Logain, em busca de um esconderijo das Aes Sedai onde poderá criar uma base de oposição a nova líder da Torre Branca, Elaida, que por sua vez promete fazer uma forte oposição ao Dragão Renascido. A ex-Trono de Amyrlin acabará contando com a ajuda das forças militares de um antigo conhecido mencionado em livros anteriores da série, Gareth Bryne. Após saberem desse abrigo secreto, Nynaeve, Elayne, Thom e Juilin iniciam uma jornada para se juntarem às Aes Sedai fugidias, mas estarão em seu encalços a Abandonada Moghedien, em busca de vingança a Nynaeve, e Mantos Brancos liderados por Galad, irmão de Elayne, precisando que o grupo entrem disfarçados numa trupe circense.
Uma das grande surpresas desse livro é a ausência do Ta’veren Perrin. Talvez Jordan não tenha visto tanta utilidade em escrever capítulos sobre sua lua de mel com Faile, mas a omissão do protagonista é um fator sentido ao longo desse volume. Por outro lado, isso permite ao autor expandir os papéis de outros personagens. Mat Cauthon ganha importância nesse livro, sendo decisivo em momentos chaves da história, e suas visões de batalhas do passado começam a fazer mais sentido após ganhar um encargo inesperado. Já Egwene parece estar cada vez menos disposta a aceitar ordens, dando obrigações até mesmo a Nynaeve, que se deparará com alguns choques de realidade durante esse capítulo da saga.
Esse livro, assim como o anterior, tem uma escala grande. Os personagens precisam lidar com muitas coisas, algumas no âmbito mais pessoal de relacionamentos complicados (Rand e suas intermináveis farpas com Aviendha, por exemplo), outras envolvendo derrotar exércitos. E basicamente não existe ponto seguro no universo do Jordan. Enquanto conduz um enorme contingente de pessoas como líder e tenta se adequar aos modos de vida bizarros dos Aiel, o inflexível Rand se vê cercado de Amigos das Trevas, sejam eles Aiels, mercadores, ou criaturas como Trollocs e Myrddraals. É tanto Amigo das Trevas que qualquer personagem novo que aparece num capítulo você já desconfia que seja mais um. Para aumentar a ótima tensão que seus capítulos trazem, o Dragão ainda resolve colocar o ex-Abandonado Asmodean, que derrotou no livro passado, como seu tutor para instruí-lo no Poder Único. A relação entre os dois é de constante desconfiança, o que me fez achar esse um dos melhores Abandonados da saga até o momento.
Tel’aran’hriod tem muita importância nesse volume, não só nos capítulos finais, mas também é bastante utilizado pelas personagens femininas para trocarem notícias, dada a distância entre elas. E as mulheres utilizam bastante perspicácia para conseguirem novas informações através dos sonhos das pessoas. Birgitte, personagem que vive dentro do Mundo dos Sonhos, tem mais participação nesse livro, e suas aparições nos capítulos de Nynaeve e Elayne são muito bem vindas.
Jordan utiliza-se de um personagem secundário do segundo livro para fazer uma espécie de sátira sobre extremismo e intolerância religiosa em As Chamas do Paraíso. O soldado Masema, que participou da comitiva para levar a Trombeta de Valere a Illian, retorna aqui como o Profeta do Dragão e líder de uma seita religiosa, e não admite nada que não seja a completa submissão de todos ao herói prometido pelas profecias. Ele exerce um grande poder sobre a cidade de Ghealdan, até mesmo sobre os governantes, e a presença de Mantos-Brancos na região cria um clima de guerra entre os dois grupos apenas para atrapalhar ainda mais os caminhos de Nynaeve e Elayne.
Uma crítica que poderia ter feito aos livros anteriores era que, mesmo com a grande quantidade de adversidades que os protagonistas enfrentam, no final todos saem bem, seja por justificativas de que por serem Ta’veren a teia do Padrão os favorece, ou por convenções da narrativa. Mas nesse livro Jordan dá uma boa ousada no final, com um acontecimento chocante que me fez levar dois dias para enfim ler as últimas cinquenta páginas. Mas ainda assim as soluções dos últimos conflitos me pareceram um Deus ex-machina em sua essência, e poderiam ter sido melhor elaboradas.
Se sob a perspectiva de construção de mundo e criação de situações complicadas envolvendo diferentes elementos da série Jordan tem se mostrado extremamente criativo e evoluindo cada vez mais, o mesmo não pode ser dito sobre o desenvolvimento de alguns personagens. Penso que o autor pega pesado demais no ponto mais fraco de suas personalidades (seja teimosia, arrogância, displicência), e após alguns capítulos a leitura torna-se cansativa ao leitor devido a inflexibilidade dessas figuras em mudarem de atitude, emperrando o avanço da história. Como resultado, o escritor acaba por em momentos dar muito enfoque em elementos que não domina tão bem, e passa por cima em acontecimentos de elevada importância.
Tais deslizes, no entanto, não retiram a ainda gratificante leitura que esse volume proporciona. Não está definitivamente entre os meus favoritos da saga, mas talvez dos cinco primeiros seja o que me deu maior sensação de epicidade durante mais tempo, principalmente nos capítulos do Rand. Os desdobramentos que Jordan tem dado na história tem sido muito interessantes, e escrever a resenha desse livro já tendo lido o próximo ajuda a melhorar ainda mais esse pela forma como alguns acontecimentos posteriores da série já estavam sendo preparados ou sugeridos nesse volume daqui. Muito bem pensado, Jordan, muito bem pensado…
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