Wagner47 02/09/2023
Centelhas transitórias de uma mesma chama
Harry August vive sua vida normalmente até morrer. Quando percebe, está numa nova vida com memórias da vida passada. Após uma nova morte, percebe que começou tudo de novo.
O livro se inicia com Harry na sua décima primeira vida. Em seu leito de morte, uma criança aparece e diz que ele precisa salvar o mundo de seu fim, o qual está cada vez mais próximo.
Mas o que seria o causador disso?
Narrado pelo próprio Harry, acompanhamos sua história em primeira mão. Médico em uma vida, detetive em outra e andarilho em mais alguma, vamos conhecendo o protagonista intimamente. A autora sabe mostrar versatilidade e deixar tudo muito dinâmico, evitando repetições a respeito da vida de Harry e reproduzindo cenários já conhecidos somente quando necessário. E em uma de suas vivências Harry é apresentado ao Clube Cronus, basicamente uma sociedade para tentar deixar tudo na mais perfeita ordem e assim evitar algum cataclismo.
Essas pessoas de "almas imortais" são chamadas de kalachakras ou ouroboranos, representando o conceito de eternidade. Porém, antes de mais nada, permitam-me um espaço para esclarecimentos e leves spoilers sobre a comunicação entre os kalachakras que monitoram a linha do tempo.
Os velhos passam determinada mensagem às crianças, que quando forem velhas passarão mensagens para outras crianças que, quando velhas, repassarão adiante e por aí vai... É um esquema para mandar uma mensagem ao futuro, porém o reverso também funciona; crianças passam as mensagens para velhos que, em sua próxima infância, passarão a mensagem para outros velhos.
Parece complexo, mas não é. Imagine uma criança em 1930 que recebe a mensagem de um velho que nasceu em 1850. Essa criança (agora velha) nos anos 2000 passará essa mensagem à frente para outra criança.
Agora imagine o contrário. Essa criança em 1930 passa uma mensagem sobre o fim do mundo para aquele senhor que nasceu em 1850. Este senhor na próxima vida e com as memórias da última passará a mensagem durante sua infância para alguém que nasceu 1790, por exemplo.
E assim sucessivamente. São espaços do tempo em que crianças e velhos kalachakras coexistem. E se as mensagens param de vir, é porque o mundo acabará em algum momento. E para impedir isso o Clube não abrirá mão de aniquilar seus iguais, seja pelo Esquecimento ou cortando o mal pela raiz.
Por que eles nascem assim? A cada vida uma nova realidade é criada? E a realidade passada de fato ficou para trás? Por que não morrem naturalmente?
Por mais que o Clube Cronus tente preservar sua existência (como também de lineares), não está ligando muito para essas perguntas e isso é mais do que suficiente para deixar outros kalachakras insatisfeitos e agirem de forma independente.
O fim do mundo fica mais próximo a cada vida e Harry tem uma suspeita de quem pode ser o causador e uma caça ao rato contra ele e contra o tempo se inicia.
Harry August tem uma construção muito boa, mas sinto que poderia ser melhor ainda. Percebemos que Harry está cada vez mais frio e menos empático, mas tenho a sensação que isso é algo que vem desde a primeira vida dele.
O livro perde boa parte de seu fôlego pouco antes da metade; por mais que a escrita da autora seja muito boa, é muita preparação de cenário. Felizmente a obra se restabelece ao focar numa linha de acontecimentos mais linear e "recomeçar", trazendo novidades e uma nova busca. Porém é literalmente outro fôlego: vai acabar antes do final.
Falando sobre linearidade, Harry não narra sobre suas vidas de forma cronológica e isso para mim é um charme a mais. O grande problema é como a autora se utiliza disso, criando facilidades para ela mesma. Basicamente antes de algum momento importante Harry conta sobre uma situação específica em uma outra vida específica e que será usada já no capítulo seguinte (como uma fuga outrora vivenciada, por exemplo). Nesses casos seria melhor deixar a história disposta linearmente e não desafiar a memória do leitor, porém entendo que isso só deixaria o ponto principal do livro ainda mais distante.
O vilão é clichê com um plano sem muita clareza e de fácil convencimento. As suas motivações são tranquilamente plausíveis, porém faltou muito desenvolvimento ao personagem. Acredito que autora poderia destinar capítulos tendo ele como narrador e contando a história sob seu ponto de vista a partir do "recomeço" citado nessa resenha logo acima. Ao meu ver arriscaria mais e o final não seria tão anticlimático.
A autora mostra que tem uma capacidade de ir além e criar algo grandioso, mas senti que ela mesma se segurou.
Foi uma leitura muito proveitosa, trabalhando de uma forma quase sempre coesa sobre oportunidades. Falar o que não foi dito, ter a escolha de Esquecer, de aproveitar ao máximo uma segunda chance.
Ou talvez uma terceira, quarta, quinta...