GioMAS 24/07/2023
Os meandros do gótico doméstico de Shirley Jackson
O livro explora aspectos psicológicos profundos, proporcionando um clima claustrofóbico de constante de tensão e questionamentos.
A obra traduz uma das principais características do terror, muitas vezes despercebida pelo leitor do gênero: abordagem a questões sociais e suas implicações - o medo nunca está dissociado dos problemas latentes enfrentados em sociedade, o que se tem, por vezes, é a transfiguração dessas pautas em elementos do imaginário, como criaturas bizarras, feiticeiros, monstros, fantasmas ou outros seres oníricos. A popularização das estórias de zumbis, por exemplo, decorre dos tenores desencadeado pela guerra fria, a ameaça de armas biológicas capazes de alterar, corromper, as estruturas orgânicas. Diversos enredos sobre casas mal assombradas estão intimamente ligadas ao aspecto econômico - a família que abdica de todos os recursos para adquirir o tão sonhado imóvel e passa a vivenciar um pesadelo.
O livro em questão, no entanto, sequer se vale desse artifício, dispensando a temática sobrenatural para focar nos meandros da mente, em um enredo de crime, intolerância, opressão, obsessão, neurose, enclausuramento, condição econômica, gênero e relações humanas.
Pois bem, a estória é contada por Mary Katherine Blackwood que, apesar dos seus dezoito anos, tem fortes traços infantis que contaminam propositalmente a narrativa, confundindo o leitor sobre a veracidade dos fatos.
A introdução é desconcertante , antecipando o clima de apreensão e o caráter dúbio da protagonista narradora. Mary revela que vive em um casarão com sua irmã mais velha Constance e o tio Julian, "todo o resto da minha família morreu", diz
sem esboçar grandes sentimentos.
O âmago da obra é revelado por meio de um diálogo controverso e muito bem elaborado, em que o tio Julian, com apoio de suas sobrinhas Mary e Constance, constrange Helen Clarke, uma das últimas vizinhas que se esforça por manter uma boa relação com a família, e sua acompanhante, a Sra. Wright.
Julian trás à tona os detalhes sobre a morte dos Blackwood, envenenados com arsênico, misturado no açúcar servido durante o último jantar da família, ali mesmo naquela suntuosa residência.
Em tom provocativo, Julian amedronta as visitantes com ponderações sobre o ocorrido. Constance sempre fora responsável por preparar as refeições e, curiosamente, não tinha o hábito de adoçar os próprios alimentos, escapando ilesa do incidente. Ainda mais curiosa foi sua reação após o súbito mal dos familiares: não se apressou em chamar por ajuda medica, fazendo-o após constatar o óbito - não sem antes lavar o pote de açúcar.
O próprio Julian foi uma das vítimas não fatais do arsênico que, mesmo ingerido em pequena dose, provocou sua invalidez, permitindo-lhe transmitir às vizinhas as sensações físicas da intoxicação. Mary, como de hábito, não se juntou aos demais para o jantar por determinação do pai.
A cena em que o diálogo transcorre resume os principais pontos do enredo. Para além dos detalhes sobre assassinato dos Blackwood, o livro pode ser analisado a partir desta densa e complexa passagem.
O tom ameaçador e irônico utilizado por Julian, com implícita conivência de sua sobrinhas, revela a postura dos três sobreviventes frente ao crime, seu estranho conformismo. A fluência e perspicácia na fala, confirmam a lucidez de Julian - que posteriormente manifesta surtos convenientes de confusão mental.
A Sra. Wrigth traduz em si os sentimentos de medo, desconfiança e repulsa que a comunidade local expressa. Da mesma forma, a reação dos três Brackwoods demonstra sua inadequação social, deslocamento e intenção de isolamento.
A descrição do ambiente, os amplos e fúnebres cômodos da mansão Brackwood é riquíssima, remetendo, obviamente, aos tradicionais castelos da idade médias, construções que reforçam o poder aquisitivo, ao mesmo tempo, corroborando com as sensações de claustrofobia e enclausuramento.
Considerando que o livro se vale de alto grau psicológico, ocultarei os demais detalhes, mas asseguro que ao final todas as eventuais dúvidas poderão ser esclarecidas a partir de um olhar mais cuidados para essa cena em especial.
Há que se dizer que todos os elementos destacados evidenciam a essência gótica do livro, não o gótico europeu clássico, evidentemente, mas o chamado "novo gótico Americano". Diga-se de passagem que a autora escrevia sob uma perspectiva doméstica, escancarando o terror imputado às mulheres, fator explícito no romance em que as relações de gênero são o ponto central do preconceito, isolamento, neurose e angústia.