Kristine Albuquerque 02/03/2020
Colonialismo, maternidade compulsória e o acúmulo de opressões.
Eu não sei bem o que dizer sobre esta obra, porque não consigo expressar tudo o que pensei e senti ao lê-la (não sem me estender demais, pelo menos), mas ainda queria registrar aqui esta experiência de leitura. Começando por elogiar a escrita, forte e sensível, que nos aproxima tanto da protagonista. E digo aproximar, de fato, porque nossa visão ocidentalizada nunca permitiria compreender o que ela sente. Vemos as opressões, as renúncias, as dores, as anulações, mas sempre com o olhar do outro, de fora. Ela vive e entende tudo aquilo como natural, insuperável, intrínseco à sua cultura e visão de mundo. E a autora consegue transmitir isso com primor: Nnu Ego age em defesa desses valores quando necessário, sofre com o que vê como inevitável e ocasionalmente questiona se seria mesmo inevitável, mas um questionamento breve que logo se apaga pela necessidade de seguir em frente, de sobreviver. Não é sobre resiliência, porque não há escolha.
O sarcasmo do título logo se evidencia, marcando toda a obra em contraste com os acontecimentos trágicos. Passando por três gerações, entre ascendentes e descendentes, conhecemos a protagonista Nnu Ego, que busca se tornar uma mulher completa e útil (coloque várias aspas aqui) para a sua comunidade. Quando isso acontecer, ela espera encontrar a felicidade e a satisfação de ser mulher. Mas mesmo cumprindo todas as funções esperadas, essa sensação não chega. O que teria ela feito de errado? Porque aqui as coisas boas acontecem graças aos esforços dos homens, e as coisas ruins recaem em forma de culpa e negligência sobre as mulheres.
O contexto é a Nigéria do século XX, enquanto ainda era colônia da Inglaterra. As diferenças entre Ibuza (comunidade Igbo tradicional) e Lagos (capital da Nigéria colonizada) marcam as vivências de Nnu Ego de forma importante, mas não só isso. Entre os lugares de filha, mãe e esposa, ela cumpre o que esperam dela, mas muitas vezes alheia a si mesma. E quando não pode corresponder a tais funções, fica perdida. Tendo engravidado nove vezes, e com sete filhos vivos, após anos de dedicação exclusiva, só conhece a frustração e a solidão. Só ficou o milagre de ter sobrevivido em meio ao inóspito. Essa obra é um apelo, um grito de resistência, para que as vidas das mulheres não precisem ser um milagre, apenas sejam.
Tive meu coração quebrado em várias cenas, em cada capítulo, mas nada se compara à cena do julgamento no final. A ingenuidade e a impotência da personagem são muito vívidas. Sem falar no desfecho, igualmente triste. Apesar de tantos temas difíceis, o ritmo flui bem na maior parte do tempo, porque a autora utiliza o tom das narrativas orais. Esse ritmo só quebra um pouco na segunda parte pelo excesso de personagens apresentados rapidamente, mas não chega a prejudicar tanto assim o enredo.
Sem saber como comentar mais sem dar spoilers, vou só deixar aqui algumas das citações mais marcantes (que poderia ser o livro todo, na verdade). Importante dizer que o livro contém cenas de gatilho para tentativa de suicídio, assassinato, estupro, violência física e psicológica.
Citações:
"Às vezes a vida podia ser tão brutal que as únicas coisas que a tornavam suportável eram os sonhos".
"Deus, quando você irá criar uma mulher que se sinta satisfeita com sua própria pessoa, um ser humano pleno, não o apêndice de alguém?, orava ela em desespero".
"Enquanto não mudarmos isso, este mundo continuará sendo um mundo de homens, mundo esse que as mulheres sempre ajudarão a construir".
"Nasci sozinha e sozinha hei de morrer, o que ganhei com isso tudo? Sim, tenho muitos filhos, mas com que vou alimentá-los? Com minha vida. (...) Tenho de dar-lhes meu tudo; e se eu tiver a sorte de morrer em paz, tenho de dar-lhes minha alma. (...) Mas se por acaso alguma coisa der errado, (...) meu espírito morto será culpado. Quando ficarei livre?".