malucpinheiro 12/06/2022
O Oscar Wilde é um gênio. E O retrato de Dorian Gray um dos grandes clássicos da literatura. Um clássico, e como tal, rico e profundo, múltiplo, essencial e atual. Não é somente um romance, é um livro filosófico, político, psicológico, jurídico, sociológico e discute, inclusive, a própria arte. Nada nele é escrito à toa, e há nele uma estrutra como um prédio, uma leitura que flui em diferentes andares.
A vida em sociedade nos leva a moralidade e a ética, o Desejo emerge como questão. Os desejos: Eles são bons ou maus? Devemos ou não reprimi-los? A noção de que reprimir o desejo seja uma hipocrisia, parte da crença de que o desejo revela uma verdade única, parte da compressão de que ele sou eu, o todo, a pureza do ser, e que nele não há contradição, mas o desejo diz algo sobre nós, somente uma verdade sobre nós, não diz tudo, e sequer o alcançamos em sua completude. Desejamos coisas contraditórias. P. Ex, liberdade e ordem. E não desejamos só coisas boas, moralmente valorizadas. Os desejos são construídos socialmente, são históricos, não desejamos em abstrato. Não há Eu isolado do mundo. Portanto, o desejo, além de não ser a expressão pura e única dessa alma profunda, ele não é necessariamente positivo ou negativo, e a norma não é necessariamente um impeditivo estúpido e nem necessariamente um atestado de avanço civilizatório. O retrato de Dorian Gray discute poeticamente essa complexidade.
Ao meu ver, Dorian Gray somos nós! Perdidos na ambivalência dos nossos desejos. Fascinados em nossa própria imagem, presos no nosso narcisismo essencial. Vejo Dorian, Basil e Henry como um todo. Tenho a impressão que são um só, me remete às estruturas freudianas de Eu-Super-eu-Id.
Desejos, normas. Razão, emoção. Luz e sombra. Bem e mal. Lobo do homem? Ou o bom selvagem? O que você faria se ninguém pudesse te ver? Narciso. Fausto. É esse jogo, a composição dessas peças que promoverá a nossa integridade. Há uma fricção, um atrito entre elas, inaugura-se o insolúvel ?mal-estar da civilização?. Emerge a questão da culpa, partindo/cindindo o humano e colocando fora de si o impeditivo à felicidade. O mundo não existe para me satisfazer, e, mais do que isso, eu não consigo me satisfazer tendo uma relação instrumental com o mundo, quando o outro é objeto. A solidão é consequência.
Dorian traz o questionamento sobre quem impõe esse limite, fala da censura e da impunidade, ?o inferno são os outros?, o outro como impeditivo. Dorian Gray revela o narcisismo, o encantamento com sua própria beleza, não vê o outro. ?O Narciso é constitutivamente um insatisfeito, porque a irrelevância do outro faz com que ele nunca possa me satisfazer, porque não há ninguém suficientemente bom para mim no mundo. A maldição do Vampiro.? (Ghirardi) E por ser inexoravelmente insatisfeito, está sempre compulsivamente em busca de prazer. O Narciso vive a quebra do limite, que coincide com o Outro. Na inexistência do Outro, não há censura, é autorreferenciado.
O ponto de virada do texto é um momento de ambiguidade do desejo, de impactante autopercepção e autoconhecimento, de vergonha, arrependimento e culpa, um instante que muda tudo! O trágico e a irreversibilidade do tempo e das nossas escolhas. Não há como voltar ao passado. Uma concessão que inicia a corrupção.
E assim, percebemos a dimensão, a profundidade, a historicidade e a atualidade do texto: A civilização, e especialmente a Modernidade, e seus ditames de beleza, pureza e ordem constroem uma sociedade organizada em hierarquia e verticalização das relações, o mundo edipiano. Ordem e progresso. E ao longo da história a dialética traz movimentos de Liberalismo e liberdade se interpondo aos reacionarismos, Fundamentalismos e conservadorismos. Vivemos hoje a Pós-modernidade (Bauman) e horizontalização das relações. Democracia. Normas customizadas. Governança. Regulação substituindo lei. Exemplo: infidelidade no casamento deixa de ser descumprimento da lei, e torna-se pacto entre os cônjuges.
(Spoiler) Há quem veja moralismo no final, que o entenda superficialmente. Mas o suicídio é a grande questão filosófica, já observou Durkheim. Era o final inevitável para o livro! Ele, nesse ato, questiona tudo. É um grande final! Em primeiro lugar, é realmente um suicídio? Ele destrói o quadro e morre em consequência disso. Daí questiona se podemos matar uma parte de nós e permanecermos vivos; questiona o sentido da vida; questiona o controle que temos sobre a nossa vida, o destino, o trágico. Ver a cena como a morte do vilão e um final moralista é cair no disfarce magistralmente colocado intencionalmente pelo Oscar Wilde, o que ele faz em todo o texto, através de sua sensibilidade poética e de ironia construir uma narrativa em vários andares. Inegavelmente uma obra de arte, uma obra prima, um clássico!