mpettrus 27/12/2022
O Atual Capataz da Elite é a Classe Média
??A Elite do Atraso? foi outra obra de não-ficção que fez parte das minhas releituras em 2022, assim como ?Os Jacobinos Negros?, também já resenhado aqui. Essa obra foi pensada, elaborada e escrita pelas mãos de Jessé Souza, respeitado sociólogo e pesquisador, graduado em Direito e mestre em Sociologia pela UnB, e também doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, com pós-doutorado em Psicanálise e Filosofia na The New School for Social Research, em Nova York.
Souza é um pensador polêmico e corajoso, se situando do lado esquerdo do espectro político, trazendo nessa obra explicações autênticas e muito diferentes do que a ?grande mídia? costuma noticiar para a população, principalmente, nesse momento turbulento por qual ainda estamos passando, pós eleições do 2º turno para Presidente da República, e ao que tudo indica estar muito longe de acabar.
? O ponto mais interessante para mim abordado pelo autor nesse livro é o seu interesse em mostrar como o pensamento sociológico culturalista racista de Gilberto Freyre e a sociologia do brasileiro ?vira-lata?, cujo ícone é a categoria do ?homem cordial? de Sérgio Buarque de Holanda, uniu-se ao patrimonialismo de Raymundo Faoro e contaminou toda a esfera pública.
A partir dessas percepções, e em resposta aos grandes problemas nacionais de hoje, Souza formula uma releitura crítica e de caráter estrutural sobre certos elementos considerados formadores do Brasil em seus múltiplos aspectos, social, econômico, político ou culturalmente. O ponto de partida é a escravidão. Para o autor a escravidão no Brasil nunca foi efetivamente compreendida nem criticada. Usando como base de pesquisa a obra ?Raízes do Brasil? de Sérgio Buarque de Holanda, o autor demonstra porque o conceito de ?patrimonialismo? é apontado como uma ideia para legitimar interesses econômicos de uma elite que, além de dominar o mercado, é a real fonte do poder e da corrupção no país, provocando assim entre as classes, extrema desigualdade social.
? De maneira muito didática e elucidativa, o autor desconstrói todo o conceito de ?patrimonialismo? forjado por esses sociólogos brasileiros do século XX, demonstrando como esse conceito forjado se encaixou na visão de ?vira-lata? atribuindo toda a corrupção ao Estado porque foi a nossa maldita herança portuguesa, ignorando completamente a particularidade da gênese da sociedade brasileira: a escravidão, que não existia em Portugal.
E a partir desse entendimento, a sociedade hoje compreende que o mercado tornou-se a casa de toda a ilibação. Para o autor, esse conceito forjado nos anos 30 do século XX foi prejudicial para compreendermos as dinâmicas sócio-político atuais que colocou como fator principal da corrupção brasileira: o Estado. Quando na verdade, o mercado, esse tão exaltado pela elite e, pasmem, pela Classe Média, manipuladíssima pela Burguesia, também está no cerne da corrupção brasileira.
Para o autor, é preciso transcender e extirpar essa lógica de pensamentos, é preciso reconhecer que o espólio intelectual brasileiro é fortemente marcado pelo racismo, que reduz nós brasileiros a párias e continuadores de uma trajetória da qual não conseguiremos nos livrar tão cedo. O nosso principal problema hoje predica na escravidão e nas suas formas atuais, que se revelam, entre outros, pelo ódio que a classe média tem em relação ao pobre.
Também pude notar o quanto a leitura dessa obra me trouxe constantemente uma reflexão crítica sobre os fatores que possibilitaram a realização do golpe de 2016. Publicada em 2017, logo após a concretização do golpe contra a democracia, Souza busca explicar os fatores que contribuíram para que o golpe perpetrado contra uma presidente democraticamente eleita se tornasse possível após anos de crescimento econômico e inclusão social.
A construção de uma narrativa de luta contra a corrupção de um partido político, no caso, o PT, capitaneada pela mídia, a criação de um pacto classista que contou com o apoio de amplos setores da sociedade brasileira e, a ação seletiva e persecutória dos procuradores Da ?Operação Lava-Jato? buscando refrear a ascensão social da ralé, foram motivos cruciais para que se concretizasse na história política do nosso país o golpe contra a Presidente da República Dilma Vana Rousseff.
? De maneira geral, após duas releituras dessa obra no decorrer do ano, e na minha visão, enquanto ser intelectual, considero um excelente livro de estudos para compreendermos politicamente nossa sociedade. Livros de não-ficção sempre me parecem muitos perigosos se o leitor não tem um conhecimento prévio do assunto do qual irá ter contato, sobretudo, se for pela primeira vez.
?Desse modo, Souza ataca posturas sociológicas baseadas no senso comum, na construção de ?mitos fundadores?, no pensamento de que maximizar relações pessoais em detrimento da impessoalidade para aferir vantagens é uma exclusividade do Brasil, bem como as análises que restringem pensamentos críticos unicamente a partir da renda ou da posição do trabalhador dentro do sistema produtivo.
Para o bem ou para o mal, é preciso, conselho meu, que se busque ter noções primárias de alguns tópicos do que irá ler, para não ficar muito à mercê da visão totalizante do autor. A narrativa do autor tem uma linguagem acessível, trabalhando no decorrer do livro uma tese não tão simples, porque é criteriosa e abrangente a respeito da construção do conceito patrimonialista e suas raízes nefastas na nossa sociedade racista.
? Encontrei sim muitos pontos dos quais discordo, porém, compreendo o posicionamento do autor, afinal, ele é um grande pensador de esquerda. Entendo que ele tenha tentado ser maximamente objetivo no debate de suas ideias, mas me pareceu uma obra propagandista do ?lulopetismo?, haja vista, que o autor deliberadamente omitiu quaisquer equívocos do ?Partido dos Trabalhadores?, bem como, seu tratamento as obras de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro.
Na faculdade de Direito, li obras desses sociólogos, considero sim que se tornaram obras um tanto ?datadas?, considero que eles cometeram equívocos, mas isso são inevitáveis de acontecer nas áreas de Ciências Sociais e Humanas, porque a Ciência não é exata. Incomodou-me o fato de que o autor demonizou esses sociólogos, sem tentar tratar minimamente de suas próprias contradições. Ora, pois, vejamos, eles foram homens de seu tempo e também à frente de seu tempo. Eles também foram fundadores do PT. Lula conviveu com esses intelectuais.
Outro ponto que muito me incomodou, aqui realmente não tive como deixar de notar, foi o quanto o autor poupa descaradamente o sociólogo alemão Jürgen Habermas, que é essencialmente identificado com o pensamento liberal, ou seja, o autor critica o pensamento da lógica do ?vira-lata?, mas acaba reproduzindo esse comportamento ao desqualificar nossos pensadores brasileiros que, mal ou bem, foram importantes para nós e, idealiza pensadores alemães.
Ainda com tantos pontos em discordância, e não vejo problema nisso, muito pelo contrário, considero enriquecedor para o meu próprio estudo, essa obra é muito importante para o debate atual. Entender que a Casse Média é o atual capataz da Elite, organizando, controlando, pregando valores e visões de vida com seu exacerbado moralismo nada crítico, mesmo quando se creem modernas e cosmopolitas, a sua marca distintiva é sim o atraso, o apego ao passado e ao ultrapassado.
E diante dessas condições, precisamos pensar e executar uma transformação radical sobre a realidade brasileira, como Souza muito bem colocou, se quisermos modificar as permanências da escravidão que deixaram marcas profundas na nossa sociedade e suas mazelas que ainda se fazem presentes na atualidade.
? Souza nos oferece robusta argumentação científica para a sociologia brasileira para repensar e reinterpretar o Brasil de hoje, permitindo uma análise de um novo paradigma para enxergar problemas e soluções para, sobretudo, enfrentarmos a questão da desigualdade social que datam da escravidão e ainda marcam a nossa sociedade, o que permite que a Elite do atraso, termo cunhado pelo autor de maneira brilhante para designar as classes dirigentes brasileiras ou suas frações dominantes, coloque em xeque o princípio da igualdade social como valor fundamental da democracia, para legitimar sua exploração contra a classe popular e com apoio da Classe Média, tão perto da ralé e tão distante da elite, com o objetivo de perpetuar a manutenção do seu poder e de seus privilégios.