Ari Phanie 29/09/2020"É possível que um lápis pareça estar novo, mas todo quebrado por dentro."Alguns spoilers logo ali, meu anjo...
Eu sempre menciono o quanto eu AMO histórias em que os protagonistas são crianças, ou pré-adolescentes. Quando são narradas por crianças, então, amo ainda mais. Acho que para escrever personagens infantis, os autores precisam ter uma sensibilidade maior, fazer um retorno a época base de suas vidas; precisam entrar em contato com o eu-infante, e normalmente daí saem histórias muito mais emotivas, delicadas e tocantes. Com "Se Deus me Chamar Não Vou" não é diferente.
A protagonista e narradora dessa história é uma menininha de 11 anos muito inteligente e perceptiva, e com uma imaginação peculiar. No começo, Maria Carmem parece uma criança como qualquer outra, que cria umas problematizações e tem convicções singulares e engraçadíssimas, mas logo fica claro que a menina está passando por um sofrimento constante, primeiro por ser uma criança solitária. Maria não tem amigos e mesmo no seio familiar, se sente sozinha. E para além disso, sofre bullying na escola. Por mais engraçadas que algumas passagens possam ser, o que a Carrara mostra é um retrato fiel de ansiedade e depressão infantil. Através dos olhos de Maria nós vemos seu mundo que é cheio de medos, vergonhas, preocupações e desejos, alguns demais para quem só tem 11 anos. E algumas coisas são interessantes de serem analisadas; como os problemas de autoimagem da menina que parecem ter surgido de uma simples expressão da sua mãe: "ela (Maria) só tem tamanho", usada para indicar que a filha não era tão velha como parecia. Mas que para a garota era indicativo de algo ruim, a fazendo desejar ser pequena e discreta. É interessante como a autora trouxe à superfície o quão impactante podem ser as palavras e expressões que os adultos usam em conversas com crianças que eles acham que são banais e claras, mas que no imaginário infantil podem ter repercussões traumáticas. Os adultos normalmente agem como se não precisassem explicar as coisas para as crianças porque elas não entenderiam ou seria muita informação, mas assim como na vida real e nesse livro, é absolutamente nítido que as crianças conseguem entender muitas coisas, e são capazes de encarar melhor uma verdade do que uma omissão ou uma mentira. A exemplo disso, é a questão do relacionamento dos pais de Maria com uma terceira pessoa. Eles pouco informam ou explicam à filha o que está acontecendo, e as mudanças são tão rápidas que levam Maria a situações traumáticas. E eles só tomam conhecimento da gravidade das angústias da menina por mera obra do destino. No entanto, esse é outro retrato muito fiel que a Carrara faz. Os pais tendem a subestimar as crianças e no final, conhecem pouco de seus próprios filhos.
Em suma, através da mente de uma criança e utilizando uma forma narrativa interessante e singular, a autora propõe que ser criança não é um mar de rosas. Como em qualquer fase de adaptação e conhecimento, pode gerar muita ansiedade, e os monstros, ao invés, de estarem sob as camas ou dentro dos armários, na verdade, estão na problemática realidade da vida. Esse livro é um delicioso, divertido e triste espelho do que você pode encontrar no mundo de uma criança. Em alguns momentos, ele pode até mesmo o fazer relembrar a que você já foi um dia. Foi uma baita experiência!