Camila Roque 09/02/2018
"Eu reclamo o direito de ser infeliz"
Este é um daqueles livros que você precisa parar alguns momentos depois de ler... por diversos motivos, que hão de deixa-lo reflexivo (como é de praxe em quaisquer distopias).
Seja pela beleza do embate entre o sr. Selvagem e Mustafá Mond (e que fordeza! Porque foi um dos personagens mais carismáticos na minha opinião, seguidos por Helmholtz e John) nos capítulos 16 e 17, seja pelas reflexões assustadoras que causa.
Primeiramente, devo dizer que no começo a leitura foi levemente arrastada. Em alguns momentos as descrições de local feitas por Huxley tornaram o livro cansativo, bem como todo o novo universo que descreve, sendo que no início provavelmente deixei muito a escapar porque não entendia muito bem o que era apresentado, precisei de tempo para me acostumar a todos os conceitos e ideias ligados aos ípsilones e deltas e gamas e betas e alfas (menos, mais e mais-mais), bem como todos os papéis prestados por eles no emaranhado das redes da sociedade. Passado esse estranhamento inicial, fiquei encantada com a estória que se desenrolava! Achei-a original, diferente e realmente incômoda (de forma positiva, como a arte muitas vezes se propõe a ser).
Incômoda porque em muitos momentos esse livro de 1932 se aproxima muito de nossa atual conjuntura. Busca irrefreável pelo prazer, condicionamento para certas formas de pensar, vidas ocupadas constantemente pelo lazer (sem que haja tempo para o ócio, para a solidão) e o uso escapista de remédios... Lembram algo a vocês?
Porque todos os discursos atuais sobre a felicidade (falsa, divulgada a todos graças às nossas redes sociais), nossa pressa e impaciência causados por um mundo cada vez mais conectado e as relações superficiais têm tido o efeito de tornar a nossa sociedade mais doente a cada momento. As pessoas estão perdendo a capacidade de se relacionarem, de tomarem decisões, sendo cada vez mais influenciáveis e intolerantes, não suportando mais as opiniões discordantes ou momentos de solidão, recorrendo ao uso de remédios (e outras drogas) que entorpecem os sentidos e amenizam as sensações quando estas são “intensas demais” ou desagradáveis.
A própria solidão e a tristeza agora são consideradas insuportáveis. Faço disso, agora, um discurso de alguém que teve depressão por dois anos. A depressão é uma doença cruel, sim. Pode ser tratada com remédios, sim. Mas isso é uma escolha, não via da regra, e da qual eu decidi por não concordar. Uma professora de yoga que tive expressou muito bem o que penso sobre isso: em uma sociedade em que nunca se está realmente sozinho (sempre estamos no facebook, instagram, whatsapp ou seja lá qual porcaria esteja em alta), a depressão surge como refúgio, uma resposta patológica para a necessidade de introspecção, de autoconhecimento. O tratamento, claro, pode ser feito com o uso de remédios que furtam a pessoa de seu próprio corpo e são uma opção mais confortável. Ou pode ser feito por um caminho mais longo... um caminho de busca por autoconhecer-se, que o tornará mais forte quando for capaz de transpor os muros da depressão.
Interessante o quanto o livro me lembrou Fahrenheit 451! Os dois são críticas a sistemas de governo diferentes (capitalismo e totalitarismo) mas se assemelham em algumas consequências. Por exemplo, o uso de soma (ou qualquer outro fármaco) para afastar-se da realidade quando não há opções de lazer (os trabalhadores de “Admirável ...”, que ao terem a jornada de trabalho reduzida não sabiam como ocupar suas horas vagas e abusavam no uso de soma e a sra. Montag (“Fahrenheit 451”) que não suportava a realidade quando não estava de frente para seus telões interativos), o desmantelamento da família (que em “Admirável ...” é tomada como uma obscenidade e em “Fahrenheit 451” deixa de existir porque cada indivíduo está cada vez mais encarcerado em seu “mundinho”, cercado por telas e fones de ouvido) e a importância de fazer com que as pessoas “não pensem”, para que sejam facilmente manipuláveis por uma forma de poder ou em nome do “bem maior” (a indústria cultural de “Fahrenheit” é tão assustadoramente real atualmente...!).
Por fim, deixo aqui uma parte do diálogo entre Mustafá e John:
- Mas eu gosto de inconvenientes.
- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.
- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.
- Em suma - disse Mustafá Mond -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.
- Pois bem, seja - retrucou o Selvagem em tom de deságio. - Eu reclamo o direito de ser infeliz. (p. 286)