bee 04/06/2023
Tw resenha extremamente longa e negativa
A sinopse desse livro vende ele como ?uma mistura de Game of Thrones e Carmilla ambientada em uma Roma Antiga repaginada?. Eu vi um pouco de Roma Antiga mas nada dos outros dois? inclusive, eu me sinto enganada de terem me oferecido uma fantasia adulta com uma protagonista vampira audaciosa e me servido uma versão estendida e mais chata de The Shadows Between Us.
A nossa protagonista, Belladonna Sarelli, é a filha bastarda de um rei vampiro, capturada por um Cônsul e forçada a desempenhar o papel de herdeira perdida de Romália, o que ela aceita com muita satisfação. Ela se descreve como uma personagem vaidosa e cheia de ambição, manipuladora, mentirosa, inteligente, fria e calculista, o que teria sido interessante se ela agisse assim também. Durante a primeira parte, ela é só uma mimada insuportável, que age por impulso com mais frequência do que o contrário, não chega a conclusões óbvias até ser tarde demais e se distrai dos supostos objetivos de vida dela com uma facilidade chocante.
Na segunda parte ela se aproxima mais do que ela jura que é, mas não o suficiente para eu sentir que toda a babação de ovo é justificada: a maioria das ?estratégias? brilhantes dela são bem simples, como usar o antecedente Bravattano dela para forjar uma aliança com o país estrangeiro ou pavimentar uma estrada menos usada para facilitar o transporte de mercadorias e viagens de turistas, mas são consideradas inovadoras porque nenhum dos outros vampiros centenários do senado pensaram nisso antes? ou seja, ela só passa por inteligente porque todo mundo é mais burro que ela.
No mais, eu senti o tempo todo como se a autora não confiasse em mim pra ler e interpretar nada, porque outros personagens falam o TEMPO TODO sobre como a Belladonna é linda e venenosa, como ela é charmosa, interessante, única e surpreendente. O tempo todo mesmo; acho que não teve um único capítulo sem que nenhum personagem fizesse uma observação sobre algum traço de personalidade incrível dela, e meus mutuals no twitter podem atestar que os elogios vão ficando cada vez mais forçados e sem cabimento. Absolutamente tudo o que ela faz é recebido com assombro e aprovação imediata por quase todas as pessoas que ela quer impressionar, e as que não caem na dela na hora, caem alguns capítulos depois. Aqueles que discordam ou desconfiam dela são sempre os vilões, o que enfraquece demais a caracterização moralmente ?cinza? que a Reggiani obviamente tentou criar aqui: os ?bonzinhos? nunca questionam os métodos da Belladonna, e a brutalidade dela só é vista como desnecessária ou assustadora por aqueles que são na verdade muito piores do que ela. Sendo invariavelmente percebida como justa por aqueles que importam, não existe espaço para defeitos com consequências reais, culpa, arrependimento, confusão, confronto entre forças aliadas ou qualquer outra coisa que possa resultar em desenvolvimento de personagem, e a Belladonna muda muito pouco do início para o final.
Tudo isso resulta em uma personagem intragável, genérica, mal escrita e previsível demais. Estou pensando em enviar a conta do meu oftalmologista para a Laura Reggiani, porque a quantidade de vezes que eu revirei os olhos pode ter descolado a minha retina; precisa de apoio militar? Foi só passar uma única noite bebendo com os soldados que no dia seguinte eles começaram a espalhar que ela é a encarnação de três deusas diferentes. Quer o crédito por uma vitória na guerra? Só precisou entrar no meio da luta sem avisar ninguém, sem nenhum único dia de treinamento militar que seja, e ir matando com o poder da mente dela até virar o jogo. Ela não ficou chocada com a realidade de uma guerra, não ficou desorientada e o maior contratempo dela foi uma flechada no ombro, o resto foi só sucesso. Ela nunca tem teve que de fato aprender nada: o mais perto disso é quando ela entra em contato com a antiga tutora do irmão dela para ter lições sobre o próprio poder, mas depois de uma mísera cena na qual a mulher reconhece que ela é muitoooo poderosa e que tem algo que ninguém mais tem, esse assunto nunca mais retorna e ela nunca chega a entender as limitações dos próprios poderes ou ter qualquer contratempo relacionado à alguma inabilidade. Em suma, a autora até tenta fazer parecer que a Belladonna não usa a plot armor mais forte do mundo, mas não resiste à tentação de ativar o arquétipo S/N.
Sobre os outros personagens, eles são tão profundos e interessantes quanto se espera de personagens secundários desse tipo de fantasia girl power baseada em aesthetic do pinterest, ou seja, nenhum pouco. Os amigos mais próximos da Belladonna não têm agência, propósito ou interesses além de servir ela, e o vínculo emocional é muito difícil de acreditar quando eles tiveram talvez três conversas (no máximo) que não giravam ao redor da Belladonna? e mesmo essas conversas eventualmente voltavam para ela, porque eu lembro muito nitidamente de um relato da Carina sobre a vida dela como amante do antigo príncipe e como ela amava ele se transformando em um discurso sobre o porquê dela acreditar na força e no potencial da Belladonna. A Lídana ainda tem o objetivo de se tornar oficialmente uma militar para se alinhar com a protagonista mas nada muito além disso, e a Morana não teve motivo nenhum para se afeiçoar tanto e tão rápido à uma desconhecida, e o Vicenzo teve talvez dois diálogos de meia página cada com a Belladonna antes de decidir entrar para a cúpula. Mesmo assim, todos os esses quatro personagens fizeram um juramento inquebrável de lealdade e proteção incondicionais à futura rainha no final da primeira parte, e seguiram o resto do livro tendo a complexidade pessoal de uma folha de alface.
Como eu já falei, todos os aliados caem no papo dela com uma facilidade bizarra, e nenhum deles desenvolve uma relação mais complexa que uma amizade casual, nenhum ressentimento ou diferenças que foram deixadas de lado em prol de um bem maior, nenhuma aproximação mais gradual. Os aliados mais relutantes talvez tenham sido o Damicca, que também virou um amigo bem rápido, e a nobre bravattana que eles fingem ser uma parente perdida da Belladonna, mas ela aparece talvez por vinte páginas no total. Quanto aos antagonistas, acho que se a autora tivesse decidido mudar o nome de todos eles no meio da história, eu não teria percebido: todas as figuras opositoras são homens poderosos, mesquinhos, misóginos e elitistas, e nenhum deles tem algum traço de personalidade além desses. O Grande Vilão é super óbvio, sem ideais, crenças, histórias ou afetos que tornem ele minimamente interessante, e ele passa tanto tempo fora de cena que durante mais da metade do livro eu esqueci que ele existia. Ele não dá medo nenhum, não causa nenhum suspense ou ansiedade, e todos os planos e golpes malignos que ele aplicou ao longo da trama foram expostos em um monólogo de páginas de duração durante o Confronto Final? ou seja, não teve construção nenhuma e precisou ser explicado em detalhes para fazer sentido, o que para mim é um sinal de fracasso narrativo.
Eu até poderia falar um pouco sobre o Interesse Romântico de Cabelo Preto #748, mas o nome dele é Lucca, ele só usa preto e teve um passado triste então vocês já devem saber tudo o que tem pra saber sobre ele.
E por falar em superficialidade, acho que a @BiaCooperFofa ia adorar esse livro. É tanto feminismo liberal, tanto empoderamento, tanta luta contra o patriarcado que parece a parede de um banheiro feminino de uma Universidade Federal. Os conflitos, reflexões e críticas acerca de feminilidade e poder não saem do básico e óbvio, seguindo fórmulas bem previsíveis: ?ele pode fazer porque ele tem um pau e eu não?, ?eles me acham menos capaz porque eu sou mulher?, ?mas se eu fosse homem??, sempre na esfera crítica de The Man, da Taylor Swift. Existem outras questões de classe e identidade sérias que parecem ter sido incluídas só pela parte ?dark? da fantasia, talvez em uma tentativa de aproximar o livro do nível de complexidade e world-building do Game of Thrones que me prometeram, só que o George R.R Martin provavelmente não mencionaria só de passagem, em um parágrafo aleatório, um episódio de tráfico sexual e estupro em série cometido por um grupo de vampiros nobres contra uma minoria racial pra tentar criar ?supersoldados?, tirando esse evento horrível da cartola sem desenvolver em algum momento quais as consequências disso na sociedade. Isso me chamou a atenção porque eu acredito que um autor deve escrever aquilo que ele se propõe a escrever: se a Laura Reggiani queria criar um universo brutal, violento e sanguinário, ela tem a obrigação de apresentar toda essa brutalidade, violência e sangue de um jeito coeso e sério, não só citar atrocidades casualmente enquanto a protagonista fica se remoendo porque o homem que ela beijou tentou matar ela.
Por essa falta de cuidado, talvez, a construção de mundo seja tão xoxa, capenga, desdentada, acabadinha. A sinopse aponta especificamente para uma repaginação de Roma Antiga, mas parece que a repaginação em questão é só pegar o básico sobre o império Romano, como o senado, a organização militar e o panteão religioso que consiste nas exatas mesmas figuras mitológicas em anagramas (Vênus virou Nuves, Baco virou Cabo, Júpiter virou Tíjupre e por aí vai) e misturar com uma insistência absurda em palavras italianas e associações pós-cristãs, como chamar o deus dos mortos de ?diabo?. A autora até tentou passar isso com a explicação de que essas palavras eram ?Antigo Romálio? mas eu, como uma pessoa que vive em um mundo onde o italiano existe, não consigo desver o idioma real e a narrativa inteira acabou ficando impossível de levar a sério. Mesmo que eu tivesse engolido alguma coisa da construção política e social, teria vomitado tudo em cima do meu kindle quando a Belladonna estabelece uma (juro por tudo o que é sagrado) REPÚBLICA MONÁRQUICA (!!!) que ela não explica direito como funciona e encerra o livro fazendo negociações de anexação de territórios vizinhos, que de alguma forma vão manter a autonomia como nação mesmo pagando tributos e sendo reconhecidas como províncias de Romália? O que no fundo é só imperialismo em letra cursiva e caneta de glitter, especialmente porque a Belladonna deixa bem claro que quem não concordar com essa anexação vai ser tomado à força.
Somando o uso obsessivo de italiano com uma escrita sem personalidade nenhuma que em diversas vezes faz uso de estruturas sentenciais anglicanizadas, falsos cognatos do inglês e modernismos que não fazem muito sentido em um contexto de fantasia, achei a questão formal do texto fraquíssima. Sei que esse é um problema do revisor também, mas para um livro em português, escrito por uma falante de português, ter o mesmo aspecto estilístico de uma fantasia genérica gringa traduzida por um GT do telegram, precisa de uma falta de esforço e atenção chocante de todos os envolvidos. Ainda nesse assunto, gostaria de lembrar a todos que ?magnânimo? não tem nada a ver com ?magnífico? e ?em detrimento? não é a mesma coisa que ?por causa de?, e às vezes a palavra mais chique e incomum do dicionário de sinônimos não vai fazer a sua escrita parecer refinada, e sim artificial e inconsistente.
Mil páginas depois, posso afirmar que Belladonna é uma monstruosidade nascida de um apanhado de frases bait para hitar no booktok, consumo sem moderação de livros com ?sombra?, ?coroa? e ?sangue? no título e os exatos mesmos diálogos que eu já li nesses livros em questão. Pela quantidade de páginas e pelo modo como o livro foi vendido, eu esperava uma complexidade maior na construção de mundo, de personagem, de relações, de tudo basicamente? até porque eu já ouvi coisas boas sobre outros livros da autora, então eu realmente entrei nessa leitura com a intenção de gostar. Acabou sendo uma leitura previsível, imatura e cansativa, e eu só terminei porque não gosto de abandonar livro e para ninguém poder dizer que ?melhora depois? e que as minhas críticas são menos válidas porque eu não li até o final. Enfim, recomendo para quem tem muito tempo livre e quiser mais do mesmo.