Carlos Cavalcanti 16/01/2015“Não há nenhuma “questão dos direitos humanos” neste país, pois todos levam uma vida extremamente digna e feliz.” (Agência Central de Notícias da Coreia [do Norte], 6 de março de 2009). E assim começa um comovente relato sobre a vida nos campos de prisioneiros políticos na Coreia do Norte.
Estranho seria começar afirmando que HÁ questões acerca dos direitos humanos. No livro Fuga do Campo 14 (Intrínseca, 2012, 232 pgs), Blaine Harden conta a história de vida de Shin Dong-hyuk, um prisioneiro do campo 14 na região de Bukchang (Coreia do Norte): do seu nascimento à sua fuga.
Shin foi um dos únicos prisioneiros a fugir do campo. Lá, além de tortura, ele lutou contra a situação precária dos meios de subsistência, contra o descaso dos direitos humanos (sem mesmo saber o que eram estes) e, o mais importante, lutou pela sua sobrevivência.
A vida no campo era regida por 10 leis. 10 leis que, para os que nasciam ali, era a única maneira de permanecerem vivos. Entre elas, a primeira dizia que:
“1. Não tente fugir.
Qualquer pessoa pega fugindo
será fuzilada imediatamente.
Qualquer testemunha de uma tentativa de fuga
que não a denuncie será fuzilada imediatamente.
Qualquer testemunha de uma tentativa de fuga
deve notificar prontamente um guarda.
É proibida a reunião de duas ou mais
pessoas para conspirar ou tentar fugir.”
E assim, Shin, ainda criança, denuncia sua mãe e irmão que planejam uma fuga, mal sabendo ele o que teria de suportar depois. Ele e seu pai são presos e torturados numa prisão subterrânea (lá também assinam uma espécie de contrato dizendo que se contassem o que se passou ali para outros seriam mortos), e Shin agarra-se a linha tênue da vida enquanto seu corpo busca suportar cortes, queimaduras, perfurações e grilhões, além do fato de não ter a higiene adequada, piorando ainda mais sua situação. E, por fim, é obrigado a assistir ao fuzilamento do irmão e enforcamento da mãe.
É também nessa prisão que conhece um senhor que viria a plantar o que mais tarde seria uma esperança em Shin. Esse senhor contara-lhe histórias sobre as variedades de comidas que haviam do outro lado da cerca. Shin, até então, só conhecia os grãos míseros e o arroz escasso.
Ao voltar para a escola enfrenta zombarias e violência por parte dos alunos e do professor – que era mais um guarda do campo – até que esse professor “some” – sim, some – e o que o substitui passa a tratar Shin de uma forma mais adequada e obriga os colegas a fazerem o mesmo. Ao se “formar” na escola do campo, ele foi designado pelo professor para o trabalho numa fazenda e então mudou-se para uma fábrica de vestimentas para os guardas.
Lá conheceu Park Yong Chul, prisioneiro político que viera de Pyongyang. E, alimentando-se das histórias de Park sobre as comidas da China, Shin pela primeira vez imaginara fugir. Quando finalmente chega a oportunidade, seu companheiro de fuga, Park, morre ao encostar na cerca do campo, eletrificada. A partir de então, Shin conta como sobreviveu até chegar ao Ocidente.
Fuga do Campo 14 é mais do que apenas um relato de uma jornada de sobrevivência de um fugitivo. É, acima de tudo, uma comovente (e surpreendente) descrição histórica de uma realidade esquecida e, frequentemente, abafada do que permeia a Coreia do Norte.
“Mas ele deixou claro que ainda
tinha um longo caminho a percorrer.
– Fugi fisicamente – disse –,
não fugi psicologicamente.”