Retipatia 05/04/2020
Suas memórias definem quem você é?
Alice Howland é pesquisadora e professora universitária, dona de uma memória inigualável, mas não apenas isso. Sua carreira está no auge, sua família, com filhos encaminhados, um casamento feliz. Quando ela olha para trás, não há arrependimentos, o que Alice vê é a construção da vida que ela sempre sonhou. Afinal, não é qualquer um que pode se dar ao luxo de alcançar seus objetivos nessas duas esferas da vida.
As coisas que pareciam bem normais começam a mudar quando Alice, em uma palestra, se esquece de uma palavra. O que é muito estranho e incomum para a titular da cátedra William James de psicologia da Universidade de Harvard.
O detalhe é que o episódio não é o único chegando ao extremo de Alice estar fazendo sua corrida habitual - que repete há anos, inclusive - e esquecer onde estava e qual seria o caminho de volta para casa.
O episódio, somado à outros pormenores, faz com que ela procure ajuda médica e, depois da insistência na procura por vários profissionais, a resposta surge: mal de Alzheimer precoce.
A partir daí, surgem várias questões e debates na história: a negação à doença, a busca quase insana por uma cura ou algum tratamento experimental para retardar os efeitos da doença. O abalo que isso causa no núcleo familiar e na própria Alice.
Um dos pontos mais fortes dessa história é que, com sua narrativa simples e fluida, a autora segue em terceira pessoa, pelos pensamentos da própria Alice, seguindo-a tão de perto que parece que ela mesma nos relata os ocorridos. Isso nos dá um vislumbre totalmente diferenciado não apenas da doença, mas em como funciona o seu avanço em um paciente.
No caso de Alice, alguém tão brilhante, o impacto parece ser ainda mais forte. Alguém que sempre usou a linguagem, que trabalha com isso durante toda a vida vê, aos poucos, em como tudo começa a se perder e pensamentos mais básicos e triviais tornam-se dificultados. É um balanço difícil já que, a própria inteligência de Alice fez com que seu diagnóstico fosse um pouco atrasado, já que seu cérebro tentava compensar de outra maneira os efeitos do Alzheimer e, assim, velando os sintomas já presentes por pelo menos um ano.
Apesar da leitura ser fluida, existem muitos termos científicos e médicos que são citados, sendo muitos aspectos dedutíveis e ou explicados diante do contexto da história. Ainda, é interessante notar como a autora se vale do próprio estágio da doença de Alice para se expressar capítulo a capítulo, às vezes é ágil e sagaz, por vezes, repetitivo e desconcertante. A mulher que conhecemos no primeiro capítulo, Setembro de 2003, numa olhada superficial em nada tem a ver com a que nos deparamos em Setembro de 2005.
E aí eis o cerne dessa história, bem além de mostrar o avanço da doença sob o ponto de vista de uma paciente, é perguntar: o quanto nossas memórias nos definem? Deixamos de ser nós mesmos quando não temos mais as nossas memórias?
Talvez a questão possa parecer não ter resposta certa ou errada, mas o título do livro Para Sempre Alice, assim como em seu original Still Alice (em tradução livre algo que passa a ideia de 'ainda sou Alice'), nos remete claramente ao fato de que o portador de Alzheimer não deixa de ser quem é diante da enfermidade. Não deixa de ser alguém.
É impossível passar incólume pela leitura, não apenas pelo drama de Alice, mas em como suas relações deterioram junto de sua memória. Em um ano, a incapacidade de manter-se em sua cadeira em Harvard. Mais um e já quase impossível se lembrar dos próprios filhos e de que sua irmã e mãe, há muito enterradas, não estão prestes a chegar em casa.
Aos poucos, o que parece é que Alice está a perder-se de si. Não apenas sua inteligência, mas quem ela é. Porque, novamente, lembramos o quanto nossas memórias definem quem somos e porquê o somos. Mas voltamos ao outro ponto: para sempre Alice, still Alice. Percebemos que, nos pequenos detalhes, nos vislumbres de memória, nos pequenos hábitos, aquela que conhecemos ainda está lá. Presente, ainda que a própria mente esteja tentando anuviar-se e esquecer.
O livro é uma leitura profunda, que traz reflexão e sensibilidade. Não apenas para os pacientes de Alzheimer ou suas famílias, mas também em como tratamos o envelhecer, a perda da memória, o passar do tempo. Em como priorizamos aqueles que nos são especiais, o que estamos dispostos a abrir mão por eles. É um lembrete sobre empatia.
Para Sempre Alice é um lembrete de que podemos ter parte de nós definidas por memórias, mas que mesmo sem elas, não deixamos de ser quem somos. Não deixamos de merecer amor, carinho, atenção, de ser alguém com vontades, desejos e gostos, e, em especial, de merecer respeito.
No post do blog falo também sobre a adaptação do livro para o cinema de 2015, com Julianne Moore no papel de Alice!
site: http://retipatia.com/2020/03/17/para-sempre-alice-lisa-genova/