Manuella_3 10/09/2014
Um vazio existencial tão profundo quanto inalcançável
As Virgens Suicidas é um livro intenso, inquietante, perturbador, sem perder a delicadeza com que trata o tema. Embora não se prenda ao suicídio, mas à busca pelos motivos que conduziram cinco irmãs ao desatino do ato, o leitor se junta ao narrador até que todas as explicações sejam dadas. Mas não serão, preciso dizer. A viagem proporcionada por Eugenides é outra, acho até que o autor quer também decifrar esse enigma. Então, abre as cortinas para o drama da família Lisbon, desmontando as peças supostamente organizadas de uma sociedade que observa e não se compromete, julga e acusa sem provas, lava as mãos para os problemas alheios e depois reclama soluções para os seus.
O suicida é alguém que desistiu, que não encontrou o que buscava, que não teve o que precisava? Costurando as histórias das irmãs, que convergem para o mesmo conflito, o autor desenrola o drama com uma habilidade que eu não havia experimentado até então: começa com um distanciamento entre leitor e narrativa, como se ouvíssemos alguém contando um caso curioso. E como um diretor de cinema, usando a câmera num zoom potente, aproxima e ajusta o foco, lançando o espectador sobre o caso. De repente nos sentimos bem perto das meninas, respiramos suas dores, queremos estender a mão para elas, impedir uma nova tentativa... e sempre, junto aos observadores, tentamos encontrar justificativas.
Cinco irmãs (que têm entre 13 e 17 anos) cometem suicídio, no intervalo de um ano. Cecília é a mais nova e abre caminho para a sucessão de desgraças que atingem a família Lisbon. A partir de sua morte começamos a conhecer um pouco de cada personagem, sendo Lux a mais provocativa das irmãs. Ao lado delas, Thereza, Mary e Bonnie comovem o leitor. A mãe é rígida demais, controla o que as meninas vestem, proíbe maquiagens, festinhas e saídas. O pai, professor da escola em que estudam, vigia cada passo das filhas, mas é, sobretudo, um fraco, conivente com a repressão imposta pela esposa, um homem que não sabe lidar com o universo feminino. O estranhamento causado pela mudança em seus odores, interesses e corpos, o barulho e o movimento das meninas deixam o inexpressivo Sr. Lisbon completamente perdido. Isso me fez refletir sobre o nosso tempo presente, com homens ainda aturdidos com as conquistas femininas e todas as novas necessidades que a vida moderna impõe e/ou desperta nas mulheres.
Naquele momento o Sr. Lisbon sentiu que não sabia quem ela era, que os filhos são somente estranhos com quem a gente concorda em viver."
Do outro lado da rua os garotos fervem com o amadurecimento sexual e se interessam por tudo o que cerca o ambiente misterioso das irmãs Lisbon. Lindas, elas encantam os meninos-narradores, que até o final não sei dizer se era um só falando por todos ou se vários se revezaram na tarefa de contar a história que aterrorizou e transformou a vida daquele bairro, numa cidadezinha americana na década de 70.
Com a partida prematura de Cecília, a família morre junto. A casa vai se deteriorando dia após dia, as proibições da mãe aumentam e as meninas ficam reclusas. Não há mais vida ali (se é que houve antes). Aos poucos não há mais luz na casa, a comida começa a escassear e a angústia que vivem preocupa a vizinhança, que tenta, em vão, ajudar. Os Lisbon estão debruçados sobre a dor e fechados na loucura, arrastando o leitor para uma aflição crescente.
Preciso destacar um momento ímpar na leitura: uma troca entre meninas e meninos, através de canções que ambos tocam pelo telefone, sem que nenhuma das partes fale alguma coisa. E o autor presenteia o leitor com a lista das canções que os personagens ouviram. É um último pedido de ajuda, mas que os meninos não sabem como atender. E é dolorosamente melancólico acompanhar o silêncio que grita nessas meninas. A grande habilidade do autor em promover um encontro entre personagens e leitor é absurda! Senti como se estivesse mesmo ali, acho mesmo que vi aquelas meninas na janela, vi as luzes piscando num SOS desesperado, estava com elas abraçando o olmo do jardim, talvez a última lembrança de uma infância feliz (por não compreender que a dor existe e está prestes a aflorar).
'No estéreo, Garfunkel começou a dar seus agudos, e não pensamos em Cecília. Pensamos em Mary, Bonnie, Lux e Thereza, presas à vida, incapazes de falar conosco até agora, mesmo dessa maneira inexata e tímida.'
A estrutura do texto pode cansar os leitores que adoram páginas recheadas de diálogos. A escrita de Eugenides é forte, precisa, com trechos dignos de nota. O narrador fala quase o tempo todo sobre o que viu do outro lado da rua ou da janela do vizinho, junto aos outros meninos obcecados pela beleza e mistério das irmãs Lisbon. Pouquíssimos diálogos, muita tensão e vários questionamentos. E alguma diversão, porque os meninos são mesmo uma curtição à parte.
Não é a vida uma construção eterna? Não são os altos e baixos, numa tentativa sem fim de equilibrar problemas, emoções e sonhos? Não é a busca que nos impulsiona, a expectativa de realização que alimenta nossos planos, fases que, vencidas, nos conduzem a novas buscas? Não há como entender o ato, nada explica um suicídio. Médicos consideram disfunções mentais ou fisiológicas. Psicólogos sondam conflitos não resolvidos. Nós, especuladores, tentamos reunir todos os dados disponíveis e até acusamos a vida que as meninas levavam. Ninguém entende como cinco irmãs decidem pelo suicídio, em conjunto e ao mesmo tempo. Não é um fato isolado que leva ao atentado contra a própria vida, creio, é um desalinhamento entre o que pensamos, sentimos e experimentamos (ou não). Um vazio existencial tão profundo quanto inalcançável (para os terapeutas).
Fiquei angustiada e cheia de indagações sobre o tema durante a leitura. Indico o livro para quem aprecia um desnudar (quase) impiedoso da alma humana.