Aegla.Benevides 23/06/2022Pela sinopse, ?Dias de abandono? pode parecer um livro sobre o divórcio, sobre o fim de um relacionamento ou sobre o luto ao perder alguém que ainda está vivo. Felizmente, Ferrante vai muito, muito além, e constrói uma trama com - ouso dizer - leves traços de terror psicológico para falar sobre um tema delicado, ainda tratado como tabu: a dependência emocional associada ao patriarcado.
O ponto de partida para a história é simples, até comum: depois de 15 anos, Mario decide terminar o casamento com Olga, sua esposa e mãe de seus dois filhos, e faz isso como quem dispensa um funcionário da empresa, com um aperto de mãos e um ?a partir de amanhã você não precisa mais vir?. Segundo ele, o problema não estava na família, e sim numa confusão interna e nos maus momentos de cansaço. Com a parcela de responsabilidade que, de acordo com a sociedade, cabe aos homens (ou seja, nenhuma), Mario deixa o lar, a esposa, os filhos e o cachorro que ele mesmo fez questão de adotar ? não preciso nem dizer que o refúgio foi buscar uma mulher mais jovem, né?
Profundamente indignada, mas curiosa para saber como Olga lidaria com a situação, permaneci atenta à leitura e ao talento irreverente e exclusivo da autora em descrever sentimentos e sensações. As páginas que se seguem vão ficando cada vez mais alucinantes enquanto acompanhamos o processo de entendimento da protagonista. Aqui, há um comparativo bem claro com os estágios do luto (Elisabeth Kübler-Ross, 1969): negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.
Nas mãos de Ferrante, Olga se humilha, duvida de si mesma, demora a encarar a realidade, perde e recupera a razão, e é esse o processo que o leitor acompanha ao longo das páginas, adentrando o íntimo da esposa abandonada. A cereja do bolo são as críticas ao patriarcado e à figura masculina traiçoeira, que são tecidas sob um tom encantadoramente cínico.
Apesar de perturbadora, a caminhada ao lado de Olga vai, aos poucos, liberando nosso fôlego, até chegarmos juntos ao momento em que ela aceita os fatos. É uma história, sobretudo, de empatia, e com certeza um dos livros mais imersivos que já li.