Mathias Vinícius 02/10/2023
Um comentário sobre: A Estrada
Cormac McCarthy chegou para ficar no dentro do espaço dos meus autores preferidos. É isso!
Gostaria de começar esse comentário dizendo que: McCarthy foi capaz de esculpir uma nova moldura, talvez um novo padrão, para o que hoje temos como noção de um futuro pós-apocalíptico. A literatura pós-apocalíptica floresceu no século XX, especialmente após as grandes tragédias das Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que forneceram inspiração para muitas histórias. A Guerra Fria, com a ameaça de destruição nuclear global, também influenciou autores a explorar o que poderia acontecer em um mundo totalmente devastado. Por isso, muitos dos romances e contos pós-apocalípticos mais famosos datam do século XX, e novas adições a esse gênero continuam sendo publicadas regularmente.
Temos como protagonista um homem e uma criança, pai e filho, dos quais, em momento algum, conhecemos os nomes. Mas afinal, de que vale ter seus nomes em um mundo devastado, coberto por poeira e cinzas, com árvores carbonizadas, construções em ruínas e estradas que não levam a lugar nenhum? Essa história vai além de ser uma crítica às decisões que os governos tomam hoje e que, futuramente, podem levar à destruição da sociedade. Como um pai pode criar seu filho em um mundo que não existe mais e em que a todo momento a iminência da morte é certa? Este pode ser um tratado sobre a fidelidade da paternidade, o medo de deixar seu bem mais precioso em um ambiente desolado e à mercê daqueles que restaram no mundo, agora conhecidos como os caras maus e os caras de bem.
As constantes batalhas sobre o pouco de moral que ainda resta nessa situação são travadas nesse palanque sombrio e sem holofotes. Apesar de todo o medo e preocupação que o romance transmite, ele também retrata a esperança e o amor redentor que podem advir desse vínculo paternal, um amor intenso e abnegado que às vezes é irrestritamente religioso e de tom enervante em uma paisagem pós-apocalíptica árida. “Nesta estrada não há homens inspirados por Deus. Eles se foram e eu fiquei, eles levaram consigo o mundo. Pergunta: Como faz aquilo que nunca será para ser diferente daquilo que nunca foi?”
Pela falta de identificação dos personagens, é possível enxergar naquela situação aquilo que deveria ser individual passa a ser coletivo. Muitas pessoas passam por inúmeras situações assim todos os dias; elas não vivem, mas precisam sobreviver nesse sistema falho ao qual estamos todos subjugados. É uma jornada de dois companheiros que precisam um do outro a todo momento, enquanto o pai se despe de suas lembranças para colocar a vida do filho como prioridade, “Ele carregara sua carteira até que ela fizesse um buraco nas calças. [...] Algum dinheiro, cartões de crédito. Sua carteira de motorista. Uma fotografia de sua mulher. Espalhou tudo por cima do pavimento. [...] Arremessou a peça de couro, enegrecida pelo suor, dentro da floresta, e ficou sentado olhando para a fotografia. Então colocou-a sobre a estrada também e se levantou e seguiram em frente.”; por sua vez o menino uma espécie de farol, que guia as motivações do pai em busca de alcançar os caminhos que levam ao sul do país, para que assim possam escapar do inverno que se aproxima.
“Quando ele acordava na floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzento do que o anterior. Como o início de um glaucoma frio que apagava progressivamente o mundo.[...] No sonho do qual acordara ele andava a esmo numa caverna onde a criança o levava pela mão. A luz deles brincando sobre as paredes úmidas de rocha calcária. Como peregrinos numa fábula engolidos e perdidos nas entranhas de alguma besta de granito.” Como não associar esse trecho ao mito da caverna de Platão? De fato, a experiência com a realidade é comparada à experiência de observar sombras projetadas no fundo de uma parede em uma caverna, enquanto a verdade é a experiência que só é possível caso a fonte de luz seja alcançada fora desse buraco na terra, ao invés das falsas projeções na pedra. Ao encontrar essa luz solar, que a princípio é dolorosa e depois purificadora, o resultado, talvez, não seja agradável para os demais. No que restou desse mundo, a ausência de luz solar pode ter acontecido devido ao resultado de um grande desastre ambiental que parece ter impedido o acesso à verdade.
Para finalizar, gostaria apenas de falar um pouco mais sobre as figuras bíblicas que envolvem a narrativa como um todo. É inegável a comparação da condição do homem/pai com o que acontece a Jó, talvez até uma releitura dessa história biblíca, principalmente nas repetições, melancolias e indagações que ocorrem ao longo de todo o romance. A reflexão sobre a trajetória de uma pessoa que é levada a negar a sua fé e a perder a sua integridade diante de todo o caos que essa desolação proporciona. Até o fim da história, os personagens estão desamparados e beirando a morte. Para aquele homem, não há um Deus a quem ele possa rezar, ou pelo menos, ele não é capaz de acreditar nisso, enquanto o menino é incentivado pelo pai a conversar e rezar para um Deus afim de reunir forças para continuar vivendo. “Ele tentava falar com Deus mas a melhor coisa era conversar com seu pai e falava com ele e não se esquecia. [...] Disse que o sopro de Deus era o seu sopro ainda embora passasse de homem para homem ao longo do tempo.”
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