Ágata 21/01/2023
Ler Conceição Evaristo sempre suscita em mim sentimentos contraditórios: ao mesmo tempo que seu estilo de escrita me prende, flui e me envolve inteiramente, ou seja, me delicio com suas palavras, muitas vezes fico com a sensação de garganta apertada, olhos marejados (mar nos olhos...) e sou tomada por um sentimento de tristeza, asco e frustração. Com a história de Ponciá não foi diferente. Mesmo sendo em prosa, os elementos denunciadores e tão fortes que encontramos em suas poesias estão lá, bem como a descrição delicada e singela de um amor e esperança que resiste (teima em continuar existindo e surgindo) apesar de. Não só de Ponciá, mas de Luandi, seu irmão, de Maria, sua mãe, e de todos que tecem o tênue fio da vida da menina-moça-mulher sobre a qual Conceição cria e relê a realidade ainda tão atual de muitas/os brasileiras/as. Conceição nos lembra, com Ponciá e com o Vô Vicêncio, que a vida é este constante rir-chorar, alegria e dor. O que aperta mesmo o peito é a constatação, com a leitura do texto e da realidade que se impõe a nós, de que a vida de alguns é mais dor, dor e dor do que risos.
Um dos elementos que também chamou minha atenção enquanto lia foi o contraste entre a vida “encantada” do povoado, do interior, e a ilusão de uma vida melhor na cidade, por sua vez, “desencantada”. Que potência a personagem de Nêngua Kainda e quantos significados ela carrega consigo! A imponente sabedoria da já velha Nêngua Kainda e seu esmorecimento ao longo da história simbolizam, ao meu ver, essa passagem do encantado, de um mundo em que não se é necessário saber ler, pois os saberes são outros, são os do contato com a natureza, com os ciclos sazonais, com o sentir o rio e o barro nas mãos, com os cantos, com o coletivo, para o mundo desencantado e frio da cidade, do cada um por si, do “time is money”, do capitalismo selvagem, racista, classista, enlouquecedor. Ainda assim, este encantado que se encarna na vivência dos moradores do povoado resiste a muito custo com a suposta liberdade dos negros não mais escravizados. Denúncia muito acertada da Conceição, tema que se apresenta em outras obras da autora. É este cenário absurdo de desigualdade social e econômica, do qual o capitalismo não sobreviveria sem, e por isso fomenta, sustenta e é estruturado sobre ele, que leva as pessoas ao ensandecimento, como o caso de Ponciá (vazia por dentro...), herança de Vô Vicêncio e de todos os relatos absurdos que Ponciá recolhe de jornais e guarda por um tempo. A loucura tem raça, classe e gênero. A fome mata.
Deixo como indicação duas peças, releituras da história de Medeia, pra quem se interessar, que tratam de alguns desses temas apresentados no livro:
Medeia Mina Jeje: https://youtu.be/ZvscmdNR4Bw
Medeia Negra: https://youtu.be/ZbaAHwYdY2w
Sem mais. Leiam Conceição.