willian.coelho. 29/01/2023
Verossímil, amargo e enxuto.
“Ponciá Vicêncio” (2003) é um pequeno romance de formação com enfoque social (principalmente referente ao racismo e à precarização das relações da população negra) da autora brasileira Conceição Evaristo (seu primeiro trabalho publicado). A trama, inicialmente, acompanha Ponciá - menina nascida numa comunidade cujas terras foram cedidas aos negros após a abolição da escravatura (1988) -, contudo, à medida que se desenvolve, subdivide-se, incorporando também como personagens principais o irmão e a mãe da jovem. O texto, sempre em terceira pessoa, migra entre os protagonistas, que se separam em busca de uma vida próspera na cidade, porém acabam mais marginalizados no ambiente urbano do que no rural, onde ao menos não se alocavam como forasteiros, mantendo seus costumes.
Envolvendo o eixo principal do enredo, há vários elementos consoantes: violência contra mulher; debilitação das relações de trabalho dos analfabetos, restringindo-se a serviços gerais, prostituição e análogos; realce entre a suntuosidade das grandes catedrais cristãs e a miséria dos infortunados que as circundam; ausência de reintegração social dos ex-escravizados; favelização; etc. Luandi, irmão de Ponciá, deseja ser policial para exprimir ordem, impor truculência; à la “...o sonho do oprimido é ser o opressor”, famosa sentença de Paulo Freire. Para que tudo isso funcione, é crucial que as personagens possuam múltiplas facetas, ao mesmo tempo que sejam eficientemente humanizadas (o que a escritora faz até com as figuras vilanescas); caso contrário, numa obra como esta, com a verossimilhança comprometida, o impacto seria nulo. Embora não haja muito desenvolvimento de personagens fora da problemática específica (o que é comum ao gênero de formação), é impressionante como a Conceição conseguiu pôr tanto em um espaço tão diminuto, é uma história sem tempo para floreios.
Também enxuto é o estilo empregado: períodos absolutos curtos ou até curtíssimos, que poderiam gerar facilmente relações de coordenação. Quanto ao emprego das palavras, é simples, todavia se sustenta, não é precário. O tom não choca, ao menos não aqueles que caminham pelos grandes centros urbanos do país ou vivem fora do santuário burguês, que é um privilégio de uma minguada fatia populacional. Talvez essa sensação seja diferente na França ou EUA, países desenvolvidos, já que a obra foi traduzida para inglês e francês. Por fim, cabe salientar que os trechos finais são um pouco atípicos para uma narrativa desse teor: espera-se um desfecho trágico.