Stella F.. 16/10/2023
Uma herança misteriosa!
Ponciá Vicêncio
Conceição Evaristo - 2017 / 120 páginas - Pallas
“Em meu enlevo por parentes, há uma parenta da qual eu gosto particularmente. Essa é Ponciá Vicêncio. Entretanto, nem sempre gostei dela. Não foi amor à primeira vista. [..] Resolvi então ler a história da moça. Ler o que eu havia escrito. Veio-me à lembrança o doloroso processo de criação que enfrentei para contar a história de Ponciá. Às vezes, não poucas, o choro da personagem se confundia com o meu, no ato da escrita. Por isso, quando uma leitora ou um leitor vem me dizer do engasgo que sente, ao ler determinadas passagens do livro, apenas respondo que o engasgo é nosso.” (Falando de Ponciá Vicêncio, posição 56)
Ponciá nos é apresentada lembrando de sua infância, e ficamos logo sabendo de seu medo de arco-íris. Há uma lenda que diz que menina que passasse por baixo dele, viraria menino. Somos apresentados à sua família, pai, mãe e irmão. A mãe era bastante supersticiosa e o pai era mais aberto. Havia um mistério em torno de Ponciá e seu avô. O avô Vicêncio não tinha uma das mãos e vivia escondendo o braço para trás. E logo menina de colo sabe de uma herança que o avô deixou para ela. A menina custou a andar, parecia que não queria, mas um dia resolveu descer do colo e já saiu andando como se estivesse treinada, e com os trejeitos imitando o avô: braços escondindos nas costas e mão fechada como se fosse cotó. O pai de Ponciá sabia as letras, aprendeu na casa dos brancos, mas não sabia juntar as palavras. Ele era filho de escravos, e todos tinham o nome do dono: Vicêncio. Ponciá detestava o próprio nome. Desde criança gostaria de ter outro. Ia para a beira do rio gritar seu nome, e sentia que ele não fazia parte dela, não lhe pertencia. Sem um nome que a fizesse sentir nominada, ela permanecia vazia, se sentia um nada, não existia. Mas, mesmo assim, ajudava a mãe nos trabalhos manuais, a pegar o barro no rio e ajudar a mãe a fazer esculturas, panelas e potes. Ponciá era boa no trabalho com argila. Ponciá aprendeu a ler.
No presente, Ponciá está sempre alheia, lembrando do passado, com seu olhar vazio. Ela um dia decidiu sair de casa para tentar melhorar de vida, após a morte do pai, e não conseguiu, vive na pobreza e sente falta da mãe e irmão que largou para trás.
Conforme vamos avançando na leitura os demais personagens que antes era irmão e mãe e homem, vão sendo nomeados e sabemos que o irmão está pertinho dela e nunca se encontraram. Esse irmão trabalha em uma delegacia, e temos o personagem do soldado Nestor que o ensina a escrever e ele, assim como Ponciá retorna à sua terra para tentar saber de seus parentes, e encontra com a rezadeira, e ela diz que ele não será soldado e ri dele. Ele então retorna para a cidade, mas deixa um bilhete para essa mulher entregar à mãe ou irmã se elas retornarem pedindo notícias. A mãe também está no movimento de ir embora em busca dos filhos, sente um vazio sem eles. Mas a curandeira diz que ainda não é a hora e entrega o bilhete com o endereço do filho. Nesse meio tempo o irmão passeando com o colega da delegacia entra em uma exposição e vê trabalhos em barro e os identifica como sendo dos parentes, e lá está o nome da mãe, Maria Vicêncio, que pela primeira vez é nomeada na narrativa. Alguém a nomeou já que não sabe ler nem escrever. O filho, Luandi, também só é nomeado a partir de quando começa a ler e escrever. A mãe vai ao encontro do filho, e chegando na estação, o soldado Nestor a reconhece, lhe parece familiar, então ele sabe que esses encontros não são por acaso, aconteceu justo em um dia que estava de serviço na estação. Mãe e filho se reencontram e para ficarem felizes, só falta a irmã. O irmão está triste porque perdeu sua amada Beliza, uma prostituta que ele amava muito, apesar do amigo Nestor, achar que ele não devia se apegar a essa mulher.
Ponciá começa a ter comichões nas mãos e ausências cada vez maiores, e um dia resolve que precisa estar perto do rio, e o marido, seu homem, a segue. Chegando à estação de trem, há um soldado negro, o irmão, que está fazendo o seu primeiro trabalho, agora como soldado e não mais varredor da delegacia. E lá ele vê de longe alguém que se parece com ele, e com o avô e identifica sua irmã. Chama a mãe e o encontro é emocionante E ao final a herança do avô vai se cumprir. Ponciá está cada vez mais parecida com ele, e vai através do seu trabalho juntar passado e presente, história suas e dos ancestrais, realidade e fantasia.
“Descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. [..] A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser.” (posição 1149)
Um livro excelente, instigante e muito bonito que fala de família, dos afetos, do tempo, do passado e futuro, fala da exploração desde tempos vindouros dos negros, escravos e da apropriação de terras pelos brancos. E o peso do nome Vicêncio usado pela família por várias gerações, demarcando para sempre o jugo dos brancos, mas não a subserviência, mas apenas a sobrevivência.
O posfácio de Maria José Somerlate Barbosa é muito explicativo da escrita e das escolhas da autora, e nos fala das características da narrativa e da autora que escreve como se fosse poesia e de maneira delicada sem passar panos quentes em questões tão prementes e atuais. Recomendo!