Dhiego Morais 10/08/2018O Último dos MagosNão restam muitas opções. As águas ansiosas por recebê-lo já se encontram logo abaixo. Ele se vira, dessa vez, de costas para o destino iminente. Não há voz. Não há sussurro. Mal se pode ouvir a respiração entrecortada do público. Rente ao próprio corpo existe a chave para o futuro, mas nem todos têm ciência disso. Você é uma sombra na multidão, um resquício de outra época, e nada pode fazer a não ser assisti-lo despencar, fração por fração de segundo. Manipule o tempo. Pare o mago. Roube o livro. Salve o futuro.
Depois de muito postergar a leitura, finalmente terminei de ler O Último dos Magos, primeiro volume de uma série YA (Young Adult), escrita por Lisa Maxwell, crescida em Ohio, EUA. Lembro muito bem do hype na época do lançamento aqui no Brasil, entre o público fiel de fantasia jovem-adulta, e, aliada a uma arte de capa fabulosa, idealizada por Craig Howell, se tornou bem difícil resistir ao encanto da obra, ainda mais pela sinopse que prometia uma mescla entre ficção histórica, fantasia e romance — e por que não uma dose agradável de sci-fi? Pois muito bem. Valeu a pena protelar tanto a leitura? Valeu. Mas cá entre nós, fica o gostinho de que eu deveria ter lido bem antes!
“A vida se tornara uma apresentação, um longo golpe, o mais próximo que conseguiria chegar da liberdade.”
Em O Último dos Magos, Lisa Maxwell reconstrói e reinventa uma Nova York deslumbrante, com o ar nostálgico do começo dos anos 1900. Embebida entre um clima de magia sedutora e do perigo oculto nas ruas escuras, somos guiados diretamente para um começo impactante e de caráter cíclico. Da ponte do Brooklyn, assistimos sem chance de impedimento o suicídio do Mago, que, em último recurso contra a Ordem, leva consigo o Livro. É o prelúdio e o epílogo. Então começa o primeiro ato.
Esta é uma jovem órfã que vive sob a tutela do Professor Lachlan, além de conviver com outros em uma espécie de comunidade, em um grande prédio solitário. Lachlan é influente, inteligente e ajuda pessoas tão especiais quanto Esta, sob uma bandeira em comum de luta contra a Ordem da Ortus Aurea, uma sociedade secular que não apenas discrimina os Mageus — pessoas que possuem habilidades inumanas, conhecidas popularmente como magia e, entre os mageus, como afinidade —, mas também os caça e os impede de fugir dali.
Esta Filosik possui uma afinidade incomum até mesmo entre os próprios mageus: ela é capaz de manipular o tempo, desacelera-lo e, com os recursos certos, enxergar entre as tessituras do tempo, de eras passadas, e viajar por elas de volta ao passado. Claro que há certas limitações, como o de não poder se deslocar no espaço — se ela estiver na Ponte do Brooklyn e voltar para o passado, aterrissará exatamente na mesma ponte ou aonde ela viria a existir — e o de necessitar de pedras especiais, uma delas denominada Chave de Ishitar.
Não apenas Esta, mas Logan e Dakari fazem parte do grupo do Professor especializado em roubos de objetos através do véu do tempo. Dessa maneira, Esta recebe a missão de retornar ao começo dos anos 1900, com o objetivo de impedir o Mago de destruir o Ars Arcana, o Livro que conteria o segredo e o poder para derrubar a Ordem e destruir a Beira, uma espécie de redoma invisível que mantém todos os mageus presos, impedidos de saírem, já que o resultado de cruzar os limites antinaturais e frios da parede é a subtração da parte intrínseca dos magos: a sua própria magia. Muitos que cruzaram, em busca da sonhada fuga ficaram com sequelas que vão da insanidade ao uso de drogas devido à depressão e às dores persistentes, até mesmo à morte.
“A maioria das pessoas não está disposta a testemunhar uma dor que não pode ser remediada. A maioria acha mais fácil simplesmente dar as costas.”
Por consequência, os leitores são levados por uma série de viagens temporais, partes delas situadas nos primeiros vinte anos do século XX. Todo o cenário, a ambientação, plano de fundo, os costumes da época são habilidosamente retratados, fato que nos transporta sem muitas dificuldades para uma Nova York cheia de mistérios, de perigos e de magia.
Outro ponto muito interessante de se citar é justamente as questões sociais levantadas por Maxwell nesse primeiro volume de sua série. Com sua escrita, assistimos o soerguimento de uma sociedade dividida nitidamente entre classes econômicas e entre classes políticas que lutam silenciosamente pelo poder daquela Nova York. Pobreza e riqueza se contrastam com frequência, bem como os entraves entre gangues criminosas e as classes burguesas. Existe representatividade em O Último dos Magos, seja pelo protagonismo feminino — com Esta Filosik, dona de afinidades e de dons para o roubo bastante ímpares, bem como de uma personalidade independente, firme, inteligente e não menos cativante, capaz de estabelecer um vínculo com o leitor, de maneira empática —, seja por minorias sociais que são inseridas com bastante naturalidade, sem deixar de situar sua importância na trama. Em tempo: ciência e tecnologia rondam o estabelecimento e o enfraquecimento da magia na obra, unindo-as na medida em que a trama progride.
A respeito das personagens, é válido comentar sobre Harte Darrigan, o Mago, que consegue tumultuar a cada capítulo os sentimentos dos leitores, que ora compreendem suas decisões, ora se enervam com tanta desconfiança. Ainda assim, Harte consegue se sobressair entre as inúmeras personagens de Lisa Maxwell, marcando com facilidade a memória de quem se aventura na história. Jianyu, Nibs, Dolph, Viola, Professor Lachlan e Jack; há uma diversificação muito agradável nesse leque, por suas histórias, suas trajetórias e por suas personalidades e desejos. O tema da imigração é bastante recorrente quando analisamos essas personagens, e, infelizmente, não é algo tão abordado na literatura fantástica, porém, não deixa de ser mais atual.
“Mas, até aí, os mentirosos são os melhores magos. E ele, por acaso, era excepcional.”
Ao ancorar no passado, Esta deverá enfrentar uma Nova York em que a magia estava mais fortalecida, onde mageus eram indesejados e perseguidos, devendo manter uma vida dupla, oculta, para sobreviver. Em busca de resgatar o Livro e salvar o futuro, a jovem precisará de todo o treinamento que teve, atenta aos perigos e ciente de que para conseguir o que deseja deverá trair a todos, sem exceção.
Unindo fantasia e ficção científica, Lisa Maxwell delineia a sua versão de um mundo em que a magia resiste, embora a duras penas. Com uma carga histórica agradável, o leitor encontra um romance YA sem a avaria da romantização extrema, que apaga a própria ficção fantástica, mas recarregado de uma contemporaneidade, de temas que versam desde conflitos de classes e disputas territoriais, até viagens no tempo que modificam a história e se transformam pela magia. Gangues, incêndios, intrigas pelo poder, ciência; costurados numa trama de escrita fluida e audaciosa.
É a sua vez de tentar parar o mago.
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