Samarithan 02/05/2020
Todo mundo tem o seu floco de neve
Em meados dos anos 90, o poeta turco Ka, retorna ao seu país de origem 12 anos após o exílio que passou na Alemanha, depois de deixar Istambul, ele decide visitar a pequena cidade fronteiriça de Kars, com o pretexto de fazer uma reportagem sobre uma onda de suicídios entre jovens islâmicas. Ao chegar no local, Ka fica preso na cidade devido a uma nevasca, e vai descobrir que a região passa por um momento conturbado, com o confronto muitas vezes sangrento entre os islamitas radicais e o Estado que pretende ser secular. O medo dos radicais chegarem ao poder por meio da democracia é o gatilho para o golpe militar que acontece em Kars, e os confrontos ficam cada vez mais violentos, com uma onda de crimes sendo cometidos dos dois lados.
Apesar do forte teor político que permeia a obra, a narrativa mantém um foco nos sentimentos e no lado psicológico dos personagens, em especial o protagonista Kars, um homem solitário e melancólico, que ao descobrir sua paixão por Ipek (uma antiga colega da escola), enxerga neste relacionamento uma última oportunidade de ser feliz na vida. Mesmo sem querer, Ka se torna um dos protagonistas dos conflitos políticos, religiosos e étnicos da região, tentando contornar o violento choque entre as diferentes facções.
Um trecho muito interessante do livro, ainda bem no início, quando Ka pergunta ao proprietário do jornal da região, o motivo da cidade, que foi tão próspera no passado, agora ser um lugar pobre, decadente e repleto de pessoas infelizes, ele recebe a seguinte resposta:
"Durante o período otomano, nenhum dos povos que decidiram ficar na região, saiu por aí batendo no peito e gritando "Nós somos otomanos!". Os turcomenos, os lazes da cidadezinha de Posof, os alemães que foram expulsos para cá pelo Czar - todos estavam aqui, mas nenhum sentia orgulho de se proclamar diferente. Foram os comunistas e sua rádio Tiflis que incitaram o orgulho tribal, e fizeram isso porque queriam dividir a Turquia. Agora todo mundo está mais orgulhoso...e mais pobre."
O livro tem vários outros trechos e reflexões marcantes, um dos aspectos que me prenderam na leitura foi conhecer um pouco de uma cultura e um povo totalmente diferente da nossa realidade, apesar de achar que intrinsecamente, os problemas humanos permanecem os mesmos independentes do credo ou etnia. Ka por exemplo, quando mais novo era um jovem idealista capaz de morrer por seus ideais políticos, após passar 12 anos de exílio e perceber que não chegou a lugar nenhum com isto, não crê mais em nenhum destes ideais, e pretende levar sua vida sem se envolver com política, mas esta, como sabemos, age como um câncer que vai corroendo tudo que toca, sendo praticamente impossível permanecer totalmente alheio a ela.
Os diferentes personagens, cada um com uma visão de mundo diferente, enriquecem a obra com diálogos e questionamentos interessantes sobre a vida, felicidade e Deus, servindo muitos vezes até como um alívio, diante da crueldade e violência da realidade.
Orhan Pamuk criou um romance intrincado, expondo as engrenagens de uma sociedade complexa e conflituosa, mas que nas inquietações espirituais e artísticas de Ka, consegue manter a beleza de sua narrativa. Primeiro livro que leio do autor, já na expectativa para ler outros!