Mauricio (Vespeiro) 31/08/2017Advertência: Você terá poucas chances de ler um livro tão chato quanto este!Escolhi “Neve” porque quis ler uma obra de escritor contemporâneo ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (2006). Imaginava que isso me garantiria qualidade no estilo, na narrativa e, de quebra, uma boa história. Errei feio. Orhan Pamuk, o laureado autor, escreveu um livro longo, chato demais, arrastado, muito mal escrito e de cunho essencialmente político, grosseiramente maquiado por um romance conduzido por personagens insípidos. Eu não conhecia o trabalho do escritor turco. Trata-se um militante político (daqueles insuportáveis) que faz das suas obras bandeiras esfarrapadas em defesa de causas específicas (desconfio que por exclusiva autopromoção). Processado (em 2005) no próprio país por “insultar e desacreditar a identidade turca”, foi ameaçado por muçulmanos e trabalhou nos bastidores para que saísse da perigosa obscuridade. Conseguiu, através de forças políticas de oposição ao governo, a indicação e consequente honra do Prêmio Nobel. Não pretendo entender quais caminhos o levaram a tal êxito, mas desconfio que o Nobel (um conjunto de instituições suecas e norueguesas) pode ceder a influências políticas, mais sedutoras que efetivamente a qualidade literária. Enfim... A melhor parte do livro foi conseguir terminá-lo (depois de tê-lo interrompido para ler “Dunkirk”). Resta-me agora esquecê-lo.
“Neve” conta a história de Ka, um poeta turco, exilado em Frankfurt (Alemanha), que volta a Istambul (Turquia) para o enterro da mãe. Lá consegue ser contratado para ir até a pequena Kars, cidade fronteiriça à Armênia, para investigar e escrever sobre uma série de suicídios de jovens islâmicas. Na verdade, mostra-se um pretexto para procurar Ipek, antiga colega de universidade por quem nutre algum interesse. Chegando lá, uma nevasca se intensifica, fechando as saídas da cidade por três dias. É neste feriado forçado que tudo acontece. Ka apaixona-se por Ipek, envolve-se com a conturbada política local justamente no momento que uma trupe de atores de teatro prepara um golpe para tomar o poder da cidade.
Se a narrativa de Pamuk tem qualquer elegância ou riqueza, não será encontrada neste livro. Uma atenuante seria a possibilidade (justificável) de esta qualidade ter sido perdida em meio às traduções, uma vez que a obra foi escrita em turco, uma língua bastante complexa. No entanto, esta desculpa é inaplicável à horrível construção dos personagens e às quase 500 modorrentas páginas em que eles se perdem. A começar pelo narrador da história: trata-se do próprio autor, Orhan, incluindo-se como personagem. Um despropósito detestável que nunca vi dar certo! (Aceito indicações de sucesso.) Para piorar, é um narrador onipresente, o que seria impossível, pois ele escreve o livro baseado nas anotações póstumas do personagem principal. Aliás, o protagonista Ka é deprimente. Um homem infantilizado, inseguro, pouco refinado, em crise existencial, personalidade dúbia, índole pouco confiável, mas que é idolatrado e imaculado pelo narrador. Não obstante, “aprendi” neste livro que os homens turcos são chorões e se apaixonam por qualquer mulher. Sendo ela bonita, então vale tudo. Tudo mesmo. Ka chega a dizer que é melhor não conhecer uma mulher para casar-se com ela. Como assim? O autor trata da questão do uso dos mantos para cobrir a cabeça de forma superficial, filosofia rasa, sendo que é um tema que permeia praticamente toda a história. As personagens femininas não conseguem salvar o elenco. Cientes da sua reafirmada beleza valem-se apenas desta virtude para conquistarem e segurarem seus homens. O autor conta uma história sobre três dias na vida de um personagem tosco, descrevendo eventos no mínimo estranhos. Uma peça de teatro (transmitida pela TV para toda a cidade) que pretende ser um golpe político não parece subestimar a inteligência de uma população inteira? No meio disso, romances, traições, mentiras, religiosidade se contrapondo ao mundo secular, tudo colocado nos vagões de um trem descarrilhado. Um turbilhão de diálogos com inúmeras opiniões sobre os assuntos tratados, mas praticamente nada fica interessante, pois são proferidos por pessoas de pouca ou nenhuma cultura. Um sonho febril onde dezenas de personagens com ações risíveis dão o ar da graça e nenhum cativa.
Se você acha que a política brasileira é uma bagunça, ainda não conhece a turca. Kars resume um microcosmo da Turquia atual, uma profusão de conflitos raciais, políticos, sociais, religiosos e étnicos. Por que Pamuk escolheu esta cidade como cenário? Basicamente porque é um barril de pólvora cercado por gasolina. E onde poderia (tentar) ilustrar com mais propriedade as questões curdas (sua bandeira mais saliente), já que esta etnia sem país forma 40% da população de Kars (a cidade é real). Porém, as motivações dos personagens são tão obscuras e inexplicáveis que, apesar de reconhecer a complexidade daquela sociedade, nada do que foi levantado conseguiu me sensibilizar.
O texto é muito pobre e repetitivo. A ode à neve é de matar de tédio. Nos primeiros 16 capítulos (de 44), o protagonista devaneia sobre a neve de oitocentas formas diferentes. E mais oitocentas iguais. Peguei raiva da inocente música “Roberta”, de Peppino Di Capri, de tanto que ela é citada no livro, sem propósito algum, ultrapassando as barreiras do ridículo. O autor enrola, enche linguiça com gordura e jornal, somando páginas e mais páginas sem nenhuma razão. Personagens completamente inúteis aparecem para desaparecerem logo em seguida. Cada vez que alguém saía para um passeio pelas ruas de Kars, invariavelmente passava “sob os oleandros”, via as crianças brincando com bolas de neve, entrava numa casa de chá e enchia a cara de raki (bebida típica da Turquia). Mas muito pior foi ter que ler a descrição de cada endereço, de cada nome de rua da cidade, seus cruzamentos, dezenas de vezes, sempre que alguém estava indo de A para B, como se isso interessasse a alguém que não é de Kars e nem pretende visitá-la nesta vida. Por fim, o protagonista sofre da síndrome de incontinência poética. Seja no meio de um tiroteio, de uma guerra civil, na chuva, na neve, no momento em que a mulher da sua vida lhe diz “eu te amo”, o cidadão para tudo, pega seu bloquinho de anotações e começa a escrever uma inadiável e inevitável poesia. Desculpem-me, mas não pude deixar de associar com diarreia. E foram 19 durante todo o livro. Sempre de forma súbita. Houve quem reclamasse, mas - acredite - nenhuma delas é transcrita no livro. AINDA BEM! Seria o cúmulo ainda ter que ler poesias de um personagem tão insosso.
Nota do livro: 5,17 (2 estrelas).