Livros da Julie 19/07/2021O cotidiano de um jovem gay em uma sociedade antiquada, machista, violenta e preconceituosa-----
"o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo o que não se enquadra no seu sistema desapareça."
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"A gente nunca se acostuma às ofensas."
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"A gente sempre pensa - digo, diante desse tipo de cena: com um olhar de fora - na humilhação, na incompreensão, no medo, mas a gente não pensa na dor."
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"No vilarejo não bastava ser um durão, era preciso também fazer de seus filhos durões. Um pai reforçava sua identidade masculina por meio de seus filhos, aos quais ele devia transmitir seus valores viris"
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"Eu preferia passar uma imagem de garoto feliz. Eu fazia do silêncio meu aliado e, de certa forma, [*****]mplice daquela violência"
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"como se a juventude não fosse de forma alguma um dado biológico, uma simples questão de idade ou de momento de vida, mas uma espécie de privilégio reservado a quem pode - por sua situação - gozar de todas essas experiências, de todos os destinos que agrupamos sob o nome de adolescência."
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"Para um homem a violência era algo natural, evidente."
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"no vilarejo, as mulheres fazem filhos para se tornarem mulheres, senão elas não o são realmente."
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"o orgulho não é mais que a manifestação primeira da vergonha."
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"só existem incoerências para aquele que é incapaz de reconstruir as lógicas que produzem os discursos e as práticas."
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"A impossibilidade de fazer impedia a possibilidade de querer, o que por sua vez punha fim às possibilidades."
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"a pobreza, a falta de dinheiro, as crianças captam isso mais cedo do que se possa imaginar.
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"Os pais são os últimos a admitir que têm filho louco."
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"Essas palavras que o álcool faz brotar a gente nunca sabe se estão enterradas desde há muito, reprimidas dentro de quem as pronuncia, ou se elas não têm vínculo algum com a verdade"
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"o comportamento dos homens era imputado às mulheres, que teriam o dever de controlá-los"
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"a gente não pensa espontaneamente na fuga, porque ignora que exista outro lugar. A gente não sabe que a fuga é uma possibilidade. Em um primeiro momento, a gente tenta ser como os outros"
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"O crime não era fazer, mas ser. E, sobretudo, parecer ser."
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O fim de Eddy foi o livro escolhido para o mês de março no Clube de Leitura Paris de Histórias (#clubeparisdehistorias), promovido pelas @parisdehistorias e @pri_leitora, e é o primeiro livro do autor.
Trata-se de um romance autobiográfico, no qual Édouard nos conta como foi crescer em Hallencourt, uma pequena comuna operária de pouco mais de mil habitantes na região da Picardia, no norte da França. Poderia ser um relato bucólico, mas a primeira frase do livro deixa claro que não se trata de um: "De minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz". Édouard é homossexual e fala de todas as dificuldades de se descobrir gay em um universo altamente machista.
O livro é dividido em duas partes: Picardia (fim dos anos 1990 - começo dos anos 2000) e O fracasso e a fuga. O autor possui uma forma muito própria de unir a voz do narrador à voz do personagem que está sendo citado. O uso de gírias, palavras vulgares e expressões informais demarcam a oralidade e caracterizam com perfeição o jeito de falar de cada um, fazendo com que a gente consiga visualizar e "ouvir" a cena.
A narrativa é extremamente rápida e fluida, o que contrabalança o peso da história, carregada de momentos um tanto chocantes, tensos e tristes. Entremeando lembranças do pai, da mãe, dos irmãos, da casa, da escola, dos vizinhos e amigos, o autor vai compondo a imagem de sua vida no vilarejo como se estivesse tecendo um cobertor. Porém, seu intuito é justamente o contrário: ele quer desfiar esse grosso tecido de culpa e opressão e finalmente se livrar desse fardo que o cobre.
Vítima de bullying e de violência física e psicológica, o autor-protagonista sofreu com o estigma de ser diferente, em aparência, gestos e atitudes ("Eles pensavam que eu tinha escolhido ser afeminado, como uma estética própria que eu tivesse perseguido afim de desagradá-los"). Sua adolescência foi um misto de resignação e revolta. Amargurado e desorientado, renegando com todas as forças suas "peculiaridades", Eddy travava uma luta interna contra si mesmo e enveredava pela obsessão de tentar ser "normal".
O livro aponta todos os sintomas de uma sociedade arcaica e patriarcal, afogada em suas mazelas econômicas e culturais. Édouard traz exemplos vívidos de alcoolismo e de todo tipo de abuso, próprios de quem se criou em meio ao ódio e à violência reproduzidos sem remorso e oriundos de um forte preconceito contra os representantes de qualquer minoria ou diversidade, fosse sexual, religiosa ou racial.
Os privilégios masculinos e o senso de pertencimento que unia os homens da região eram claros. As mulheres eram relegadas a outro plano e aqueles mais afortunados, que tinham recursos ou acesso a uma educação melhor, eram desprezados. As diferenças de sexo e de classe são nítidas e fortes demais para serem ignoradas.
Guardando uma leve lembrança com a ambientação do filme "Bem-vindo a Marly-Gomont", que conta a história de uma família de negros imigrantes, Édouard desenha um retrato pungente da vida dura e sofrida dos habitantes dessa França interiorana e conservadora, arraigados aos seus hábitos, avessos a qualquer tipo de mudança ou novidade, acorrentados às crenças de sempre e que perpetuam os mesmos comportamentos sociais e padrões machistas pelas gerações seguintes.
O fim de Eddy é um livro único e desconcertante, que mescla crueza e sensibilidade para alertar sobre a homofobia e suas consequências, que ainda hoje podem ser nefastas, irreversíveis ou afetar profundamente a formação da personalidade de um indivíduo. Cabe, por fim, o alerta de gatilho para quem já foi vítima de bullying ou violência, devido aos velhos sentimentos e emoções que o livro evoca.
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