legarcia 03/01/2024
A cruel e presente história da escravidão
Está aqui uma das obras que mais apreciei durante a leitura em algum tempo. Assim que me deparei com a primeira página já percebi a qualidade literária e humana presente no livro. Conceição Evaristo, só com essa obra, já demonstra que merece um espaço de renome na nossa literatura. Que história bem construída e bem trabalhada!
Conceição cria personagens que podem ser vistos tanto por sua história pessoal, quanto como uma metonímia da história africana. Essas duas possibilidades interpretativas não são excludentes, mas sim podem ser observadas juntas para um entendimento maior. Uma desses paralelos entre África e os personagens é a dispersão do núcleo original da família, que só ocorre por causa da violência vivenciada por eles. Esse desfazimento familiar não discretamente nos leva para a própria diáspora africana, pela qual tantas pessoas foram violentamente separadas de sua terra, de seu cotidiano, de família e amigos para sofrerem mais infinitas violentas crueis na América.
Assim, Ponciá sairá de casa e chegará à cidade sob a posição de exclusão, cuja a permeabilidade é controlada e onde continuará a sofrer violências. Tudo que a mulher consegue é um barraco na favela e casa com um homem que também a subjuga a ele. Então, Ponciá vive todas essas violências, além de estar longe de sua casa e dos seus.
Ponciá leva consigo a herança do avô, que ex-escravizado enloquece e ataca a família ao perceber que a escravisão permaceria mesmo após a abolição, mesmo que por configurações sutilmente modificada, por dinâmicas diferentes. A mulher, então, carrega em si essa herança, quase como se fosse sua sina e mesmo sem saber exatamente o que ela é.
Além disso, Conceição explora um tema extremamente importante à população negra brasileira: a busca pela sua identidade e sua cultura. Assim como Ponciá, que até o sobrenome originava-se do branco dono de escraviados, os africanos trazidos para o Brasil eram desconectados de sua cultura, de sua história. Dessa forma, afro-descendentes precisam de um esforço para hoje conectarem-se com sua ancestralidade e construírem uma identidade para si. E Ponciá passa por esse sofrimento de não ter plena certeza de quem é, de onde veio e de suas raízes e precisa, então, construir sua identidade, evocando a ancestralidade e a memória cultural de seu povo.
Há na obra diversos caminhos de personagens que merecem atenção, mas ficarei focada em Ponciá aqui nesse breve texto. No entanto, essas histórias tocaram-me profundamente. Acredito ser uma leitura muito relevante e interessante para qualquer pessoa, mas principalmente para brasileiros. É uma narrativa de extrema qualidade técnica, com frases curtas e eficientes, que provocam um efeito potente e vão tecendo uma narrativa envolvente e emocionante.