Crônicas Fantásticas 15/09/2020
Bruxa Akata
Resenha por Thamirys Gênova
Título: Bruxa Akata | Autor: Nnedi Okorafor | Editora: Record (Selo Galera Record) | Gênero: fantasia | Páginas: 322 páginas | Ano de publicação: 2018 | Nota: 4,0/5,0
As obras de um artista, ainda que não intencionalmente, carregam nelas as marcas do tempo e do lugar desse autor, ou seja, uma obra revela muito da sociedade na qual foi concebida. Bruxa Akata nos leva diretamente à África, mas não a que estamos acostumados a ver retratada de modo genérico. Essa África tem gírias, línguas, costumes, tribos, roupas, religiões, globalização. É a África do século XXI com magia. É uma obra livre dos estereótipos brancos sobre como a África deveria ser… Imagina só o que vem por aí!
Nossa viagem literária tem um destino específico: a Nigéria de Nnedi Okorafor. Ela é professora universitária e já foi vencedora de dois importantes prêmios literários, Hugo e Nebula, pela obra Binti, publicada em 2015. Seu livro de maior sucesso é Quem Teme A Morte (2010), que vamos resenhar por aqui ainda este ano. Nnedi traz em sua narrativa duas marcas que considero muitíssimo importantes para um autor: maturidade literária, ou seja, um repertório de recursos que permite criar obras robustas, e essa marca de sociedade que comentei logo acima. É notável o quanto as questões nigerianas estão no centro de sua criação, como isso transforma sua aventura numa história memorável. Considero isso um dos aspectos mais dignos de serem admirados num escritor: o valor social de sua arte.
O modo como tenho introduzido Bruxa Akata pode fazer vocês pensarem que é um livro formal, cheio de filosofia e beletrismo. Nada disso! Ele foi apelidado de “Harry Potter nigeriano”, e isso faz jus ao público para o qual ele foi endereçado. A narrativa é muito divertida, juvenil, leve, e dá aquela vontade adolescente de estar com os personagens nas cenas de ação.
Nossa protagonista e narradora é Sunny, de 12 anos de idade. Albina, ela chama a atenção de outros alunos que zombam de sua pele. Além disso, Sunny carrega outra diferença pela qual é discriminada: morou com os pais nos Estados Unidos e se mudou para a Nigéria já adolescente. Ela é o que os outros colegas costumam chamar de akata: o africano ocidentalizado.
Depois de ser discriminada em sala de aula, logo no início de sua vida escolar nigeriana, Sunny é defendida por um único aluno, Orlu. Ele passa a ser o principal confidente de Sunny, exatamente quando tudo está para mudar. Uma noite, observando a chama de uma vela, Sunny vê o fim do mundo, e se assusta. Ela tem certeza que a vida na Nigéria tem algo a lhe revelar.
Com a ajuda de Orlu e dois outros amigos que encontra ao longo da história, Chichi e Sasha, nossa jovem narradora descobre que faz parte do seleto grupo de pessoas-leopardo. Os leopardos são humanos com habilidades mágicas concedidas a eles por nascimento ou merecimento. Como se não bastasse, Sunny também é uma agente livre, o que significa que além das habilidades, ela também consegue transitar no mundo dos vivos e no dos espíritos. Imaginem isso: aos 12 anos de idade, com pais controladores, deveres de casa, e claro, alguns demônios ancestrais causando encrenca pelo caminho.
Até aqui, todos concordamos: é muita informação para uma menina de 12 anos. E aqui também chegamos ao ponto inicial da nossa resenha: é justamente a relação entre o estranhamento de Sunny e a velocidade da narrativa que torna a história interessante. Nós, leitores, compartilhamos do drama de Sunny, que é levada de um lado para outro, pelo menos por um terço da história, sem saber direito o que está havendo. Por consequência, – e isso foi genial da parte de Okorafor – a narrativa não permite ao leitor acompanhar com precisão o encadeamento dos acontecimentos até que Sunny comece a entender o que a magia significa e nos relatar suas descobertas de forma mais completa e linear.
Um segundo aspecto que acho importante em Bruxa Akata, é que a aprendizagem de Sunny não é baseada em uma bruxaria “escolar”. Toda a evolução da menina como pessoa-leopardo, embora tenha uma hierarquia mágica marcada, não depende apenas de seu sucesso ao aprender jujus (como são chamados os encantamentos e feitiços) ou seu conhecimento literário sobre como se camuflar entre as ovelhas (humanos sem poderes mágicos).
As coisas realmente importantes de sua trajetória são feitas com ímpetos de coragem, decisão e reconhecimento de que ela pode ser albina, akata, mais jovem e menos experiente em jujus que seus colegas, e ainda assim, arrebentar como pessoa-leopardo. Achei MUITO significativo que a progressão dela esteja muito mais vinculada ao sucesso em habilidades socioemocionais do que em cumprir ritos acadêmicos, como provas e notas. Isso também se repete nos casos de Orlu, Chichi e Sasha, que acompanhamos por tabela, ao lado de Sunny.
A aventura traz ainda mais uma discussão, bastante oportuna: poder e ética. As pessoas-leopardo, na forma como Sunny é orientada por seus mentores, são absolutamente proibidas de usar suas habilidades em benefício próprio. E quando isso acontece na história, elas são punidas magistralmente, ou seja, erros tem consequências, inclusive usar as habilidades para levar vantagem em cima de outros que não a possuem. Achei muito bacana mostrar essa relação ética no mundo mágico, especialmente porque a autora vincula esses “abusos” mágicos ao bullying, um problema que sabemos ser cotidiano nas escolas do mundo todo, especialmente na faixa etária desse público leitor.
A autora traz em seu enredo um problema que ocorre na Nigéria, tratado como o vilão da história: o desaparecimento de crianças nigerianas, brutalmente assassinadas em rituais de magia. O maléfico Chapéu Preto deve ser derrotado por Sunny e seus amigos, e essa pode ser considerada uma mensagem de apoio e alerta às crianças nigerianas ameaçadas por essas situações. Os vilões podem ser enfrentados, mas nunca por pessoas despreparadas e sozinhas. E magia nunca deve ser usada para ferir outras pessoas. Há uma punição aqui ou em outro lugar, mas certamente há.
Em resumo, é um livro bastante divertido, bem construído e que mostra a cultura nigeriana de uma forma bastante leve, natural e principalmente, original. Apesar da comparação a Harry Potter, Okorafor consegue cravar diferenças que tornam sua narrativa parte de uma rede, mas única em suas referências e questões.
Um último aviso e justificativa: o livro recebeu nota 4, pois apesar das várias qualidades que mencionei aqui, o primeiro terço de história é bastante arrastado. Realmente, é difícil acompanhar os fatos até Sunny “engatar” como pessoa-leopardo. Isso pode desencorajar muitos leitores, e confesso, quase me desencorajou. Embora faça parte da estratégia da autora (no meu entendimento, que fique claro), acho que pode ser um ponto de “desalinho” que pode causar incômodo ou uma impressão de “errou a mão” em alguns. Por esse “desgaste inicial”, nota 4,5
Você pode encontrar o livro “Bruxa Akata” aqui.
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