spoiler visualizarLetras e Ponto 04/07/2020
"No Seu Pescoço", por Chimamanda Ngozi Adichie
Nesta série de contos, contendo 12 no total, a autora mergulha o leitor em um relato ficcional e, ao mesmo tempo, autobiográfico que permite uma reflexão ampla sobre as temáticas abordadas. A imigração para os EUA, a desvalorização da figura da mulher, a resistência a forças opressoras e a homenagem aos valores e costumes nigerianos são pontos recorrentes em suas histórias que tornam o livro uma obra universal e particular simultaneamente.
Contendo referências históricas da Nigéria, como a ditadura de Abacha e a Guerra do Biafra, os contos ambientam quem está lendo de forma natural, um ponto bastante forte na escrita da Chimamanda, que consegue criar personagens reais e humanos, não apenas peças de um jogo que ela pretende ganhar.
“No Seu Pescoço” é rodeado por metáforas que acalentam e evidenciam o talento da escritora para usar figuras complexas ao invés de palavras singulares. Os finais abertos ou em ação dão ao leitor a chance de interpretar o que foi expresso e imaginar o futuro daqueles personagens.
Segue um breve resumo/resenha de cada um dos contos:
1. “Cela um”
O primeiro conto trará a violência policial impune como cerne da narrativa, abordando a prisão injusta de um jovem de família negra, Nnamabia, sob acusação de participar de um dos cultos que tomavam a cidade e o bairro e assassinavam pessoas inocentes ou de grupos rivais. O garoto preso, então, passa a enxergar e contar vagamente a seus familiares as mazelas do sistema prisional e o quanto a polícia sai impune de seus abusos.
2. “Réplica”
Traída pelo marido enquanto cuidava dos filhos nos Estados Unidos e seu cônjuge, Obiora, cuidava dos negócios na Nigéria, Nkem passa a buscar a si mesma depois da revelação. Quando percebe que não conseguiria ser igual a amante, ela coloca a si mesma em primeiro lugar, em seu lugar original, e começa a tomar suas próprias decisões.
3. “Uma experiência privada”
Inseridos na ditadura de Abacha, os conflitos étnico-religiosos entre igbos cristãos e hausas muçulmanos tornam-se bastante frequentes e violentos. Em uma dessas ondas de violência, duas mulheres se abrigam juntas em uma loja abandonada e compartilham dores e medos. O detalhe deste conto é mostrar o quanto governos impulsionam desavenças civis e que, apesar de serem de lados diferentes no conflito, ambas são capazes de compreender e se simpatizar com os problemas que enfrentam.
4. “Fantasmas”
Um sobrevivente da Guerra de Biafra chamado James Nwoye, professor aposentado da Universidade de Nsukka, encontra anos após o conflito e todas as suas perdas um colega de trabalho que pensava ter sido morto, Ikenna Okoro. Esse reencontro aviva memórias do senhor e traz reflexões sobre o papel de cada um naquele período. O conto aborda também a questão da falsificação de remédios, um problema muito sério em todo o continente africano, e a presença da falecida esposa na vida do aposentado.
5. “Na segunda-feira da semana passada”
Neste conto Kamara começa a trabalhar como babá nos EUA assim que se muda em busca do green card e encontra-se tomada por um sentimento forte pela mãe da criança Tracy. Entre lidar com seu marido, por quem não sente mais nenhuma grande emoção, e cuidar do menino, a mulher observa a sobrecarga de tarefas e expectativas no infante e reflete acerca dos contrastes culturais sobre a criação e costumes no geral entre a Nigéria e os EUA.
6. “Jumping Monkey Hill”
A escritora nigeriana Ujunwa Ogundu é convidada para participar de um workshop com outros autores africanos e lhes é proposto que escrevam um conto ao longo da semana. Confrontada por memórias e desafios do passado, a personagem enfrenta a desvalorização do trabalho feminino, a objetificação de seus corpos e a invalidação de suas narrativas por figuras masculinas que acreditam ser detentoras da razão e da crítica apurada. O efeito metalinguístico do conto traz à narrativa um tom vivo e explicativo do processo de criação. Somado a isso, a presença de uma mulher forte contando a sua própria história fortalece a narrativa e mostra a importância de nunca se calar frente a mentalidades patriarcais.
7. “No seu pescoço”
No conto homônimo ao livro uma jovem deixa a Nigéria para tentar a vida nos EUA, com apoio da família e amigos, mas percebe que sua imagem como mulher expõe comportamentos de posse e abuso e ela decide fugir dessa realidade. Enquanto busca sobreviver sentindo a solidão no desconhecido apertar-lhe o pescoço, a mulher passa a fazer, particularmente, censuras a certos comportamentos americanos que advém do privilégio branco, da posse de bens e da “mistura de ignorância e arrogância”.
8. “A embaixada americana”
Ambientada na ditadura de Abacha, na qual a censura à imprensa e a violência eram cotidianas, uma mulher tem seu filho, Ugonna, assassinado por consequência do trabalho jornalístico pró-democracia de seu marido que, no dia da morte da criança, já havia fugido para os EUA. Ela, então, rodeada de mágoa, culpa e desolamento, encontra-se na fila da embaixada americana para conseguir asilo, mas com o passar do dia reflete sobre a vida que quer levar em detrimento da morte de seu filho.
9. “O tremor”
Com um acidente de avião na Nigéria, Ukamaka encontra-se temendo pela vida de seu ex-namorado até que um senhor chamado Chinedi aparece à sua porta propondo que ambos rezassem juntos pelos possíveis sobreviventes da tragédia. Esta nova relação irá guiá-la a refletir sobre seu relacionamento passado, ao passo que desenvolve pelo novo amigo um grande apreço pelo homem. Relacionamentos abusivos e a ilegalidade de imigrantes são assuntos tratados nesse conto de forma descontraída, rodeados por figurações religiosas e questionamentos espirituais.
10. “Os casamenteiros”
Após ter um casamento arranjado pelos seus tios com um médico nigeriano que mora nos EUA, Chinaza Agatha passa a viver com o marido e vê o quanto ele desejar apagar a cultura ancestral dele naquele país. Muda o próprio nome, os hábitos alimentares, as roupas, as formas e exige que a esposa faça o mesmo, considerando os costumes americanos melhores e mais adequados. Neste conto a autora aborda não só a imigração, mas os meios utilizados para alcançar a legalidade e o quanto uma sociedade pode exercer sobre o estrangeiro uma força aculturadora que guia à negação das próprias raízes.
11. “Amanhã é tarde demais”
A partir do experimentalismo desse conto, com uma narrativa em segunda pessoa, a autora nos conduz pelo verão da morte de Nonso, o irmão mais velho da protagonista e o primogênito da família. Esse evento marca a vida da personagem e de todos os familiares, desencadeando uma série de eventos e que dão espaço para a menina viver à parte da sobra do falecido.
12. “A historiadora obstinada”
No último conto do livro é apresentada ao leitor uma Nigéria em que a colonização europeia está lentamente sendo iniciada. Os clãs ainda são a força e a estrutura de grande parte do país e nossa protagonista, Nwangba, dotada de força e irreverência, guia o conto ao longo das décadas, desde seu casamento com o guerreiro Obierika até sua morte. É possível notar nesse conto que a catequização dos jovens por missionários e a tomada de espaços de poder pelos colonizadores foram as maiores armas para desestruturar e desvalidar a cultura dita pagã, mas que alguns descendentes dessa cultura carregaram consigo o orgulho das raízes e mantiveram viva a tradição no mundo colonizado.
Considerações finais:
Além das histórias incríveis e dos personagens envolventes já comentados, acho que o que mais me encanta neste livro é o quanto ele me faz querer aprender mais. A cada conto finalizado, eu fazia anotações e perguntas para poder pesquisar a respeito posteriormente, especialmente relacionado ao momento histórico nigeriano mencionado, e isso é um grande indicativo de uma obra que, de fato, muda as pessoas, que cumpre seu papel de elucidar problemas e suscitar a discussão.
Meus favoritos foram "Uma experiência privada", "Jumping Monkey Hill" e "A historiadora obstinada", tanto pelas narrativas quanto pelos personagens fantástico e elaborados. Estou ansiosa para conhecer mais sobre o trabalho dessa autora.